Nos longínquos tempos de abril de 2020, no início da pandemia, Billie Eilish apareceu no especial One World: Together at Home com o irmão, FINNEAS, entoando um cover de “Sunny”, o clássico do jazz gravado originalmente por Bobby Hebb, em 1966, e eternizado pelo Boney M na década seguinte. Escolha curiosa para uma estrela pop que, na época, tinha 18 anos de idade - o Happier Than Ever, segundo álbum de estúdio de Eilish, prova que deveríamos ter prestando um pouco mais de atenção nisso.
Desde os primeiros acordes de “Getting Older”, a faixa de abertura do disco, emerge dos vocais da norte-americana uma sensibilidade soul insuspeita, que contagia aos poucos também a produção. Quando chegamos a “Billie Bossa Nova” (é esse mesmo o título), a terceira canção da lista, estamos ouvindo Eilish arriscar melismas por cima de uma batida tropical-eletrônica esparsa, fiel ao minimalismo que a fez famosa, mas despida da ironia e do verniz de artpop alternativo de uma “Bad Guy”.
E aí vem “My Future”, a balada otimista que Eilish lançou ainda no ano passado. Por cima de uma produção baseada em violão e batida sintetizada, ela emula uma Lauryn Hill, uma Estelle, uma Des’ree, e cria um clássico instantâneo da mistura folk-soul que é tão rara e tão preciosa na atualidade.
Como em décadas passadas, essas canções são veículos para letras confessionais desavergonhadas, em que Eilish fala tanto de forma positiva sobre sexo (em “Billie Bossa Nova”, ela se insinua para o interlocutor, sugerindo que eles “façam um filme que teriam que esconder”) quanto sobre os efeitos duradouros do abuso - tudo no Happier Than Ever é agridoce. Em “Getting Older”, por exemplo, ela diz estar “mais feliz do que nunca”, citando o título do álbum, mas também admite que, às vezes, não tem controle sobre a própria história: “Queria que minhas promessas dependessem de mim/ Não da permissão dele/ Não foi minha decisão ser abusada”.
Há espaço no Happier Than Ever para algo menos sutil, no entanto. “Oxytocin” marca essa virada ao levar o disco para um território que resvala no rock industrial de um Nine Inch Nails (a semelhança com “Closer” é impossível de ignorar), e mostra o lado debochado, ácido, da estrela pop. Outro single lançado antecipadamente, “Lost Cause”, lembra as baladas sugestivas de western do Queens of the Stone Age ou do The White Stripes - mas as melhores confecções do álbum são espetacularmente originais.
“Halley’s Comet” marca a metade do Happier Than Ever com uma alquimia deliciosa de teclado, órgão e guitarra (ouvidos atentos vão pegar a delicada, mas fundamental, aparição do instrumento na marca dos 2 minutos) e uma estrutura surpreendente - incluindo uma intermissão instrumental no meio da canção que a transforma em uma quase-valsa entoada em tons roucos por Eilish. Romântica e ansiosa, ela canta, meio que na brincadeira: “O cometa Halley aparece mais frequentemente do que eu”.
A segunda parte do disco é dedicada a reflexões sombrias de Eilish sobre fama, imagem corporal e a indústria do entretenimento. Essa nova virada é operada por “Not My Responsibility”, faixa falada que foi introduzida ainda durante a turnê do disco anterior, como um interlúdio exibido no telão do estádio entre as performances. “O meu valor é baseado na sua percepção? Ou será que sua opinião não é minha responsabilidade?”, pergunta ela no final do discurso.
Daí desaguamos na sufocante “Overheated”, que reconta um encontro com paparazzi; eventualmente reencontramos o single “Your Power”, com sua condenação de um interlocutor que abusou de uma jovem menor de idade; e chegamos à culminação da história em “NDA”, que pinta um retrato restritivo da vida sob os holofotes. Essas são canções levadas nos tons mais graves de Eilish, mas preenchidas com sintetizadores ou cordas de som amplo pelo produtor FINNEAS - uma contradição angustiante, mas sedutora.
Este seria um bom final para o Happier Than Ever, e a cantora parece saber disso, mas a batida do final de “NDA” cai direto (em uma daquelas transições de música fluídas, à la set de DJ) em “Therefore I Am”, que sinaliza um último suspiro longo e bem humorado para o álbum. As três faixas finais mostram um cinismo desprendido e uma vontade irresistível de explorar gêneros e tons diferentes.
A faixa-título “Happier Than Ever”, por exemplo, começa como uma balada country anos 1960, à lá Patsy Cline, e se transforma em um épico rocker dos 2000, que não estaria fora de lugar na discografia do Paramore. “Eu poderia falar de todas as vezes em que você foi pontual/ Mas teria uma página em branco, porque você nunca fez isso”, zomba Eilish em um trecho.
Já a faixa final, “Male Fantasy”, é uma paródia carinhosa das baladas folk de Taylor Swift - com o mesmo violão bucólico, a mesma linha melódica açucarada, e Eilish simulando um tom mais agudo e ofegante do que costuma entregar nos vocais. Falando de forma ambivalente sobre a dificuldade de deixar um relacionamento para trás, por pior que ele tenha sido, a cantora passeia por um território que não é seu sem sombra de hesitação ou desconforto - impressionante para uma artista em seu segundo álbum, e em seus 19 anos.
Antes do lançamento de Happier Than Ever, Eilish deu entrevistas falando do orgulho que sentia do disco, e que temia soar “meio convencida” quando falava dele. Ela não tinha motivos para se preocupar - o que ouvimos aqui não é nada menos do que a consolidação de uma sensibilidade pop transformadora.
Ano: 2021