Em certo sentido, - (ou Subtract, como vamos chamá-lo a partir daqui) começa nos mostrando o melhor de suas intenções - “Boat”, a faixa de abertura, é uma balada sincera que faz duas coisas muito bem. A primeira é revelar a contribuição do produtor Aaron Dessner para o som de Ed Sheeran: em suma, o músico do The National tenta fazer por ele o que fez por Taylor Swift nos álbuns Folklore e Evermore. Dessner sabe como despir o talento para composição dos popstars de suas vestimentas radiofônicas exageradas, sem perder de fato o apelo popular, especialmente por entender que vivemos em um mundo onde “apelo popular” é um conceito que abrange de Rihanna a Lana Del Rey, de Post Malone a Billie Eilish.
A fórmula inclui violão acústico, toques graves do piano que evocam o folk sóbrio de bandas como o próprio The National e intervenções de violinos e violoncelos discretos, mantidos baixinhos na mixagem e frequentemente em contratempo com a melodia principal. “Boat” traz Sheeran de volta para o território sonoro no qual ele passeava no começo da carreira, mas não deixa de dar conta do tempo que passou desde então, criando um clima de melancolia muito mais maduro do que o exaspero sufocante de “The A Team”. A consciência social ficou pelo caminho, mas “Boat” faz um bom argumento pela validade desse novo (velho) Sheeran que nos fala do alto dos seus privilégios.
A segunda coisa que a faixa faz bem é nos introduzir ao universo lírico do Subtract, que nasceu de uma miríade de crises na vida do seu autor. Sheeran já falou publicamente sobre como sua esposa foi diagnosticada com câncer durante a gravidez (felizmente, ela pôde ter o bebê e teve uma recuperação completa), e sobre a morte de um de seus melhores amigos no mesmo período. Para um músico que declara que “compor é sua terapia”, não é surpresa que eventos como esses tenham levado a uma tentativa de se abrir mais direta e especificamente em suas letras, que haviam se tornado progressivamente vagas nos últimos anos, em uma tentativa - em última instância, condescendente - de apelar para o mínimo denominador comum.
Nesse espírito, “Boat” dá o pontapé inicial nas alusões a fenômenos naturais que formam a fundação lírica do Subtract. “Vim aqui pela brasa/ Mas fiquei pela brisa/ Preciso sentir os elementos para me lembrar/ Que há beleza quando tudo está sombrio”, canta Sheeran nos primeiros versos da canção, essencialmente nos entregando o manifesto do disco. De novo e de novo, durante as 14 faixas, o músico faz referências a água, fogo, chuva, Sol, maré, vento, arco-íris e vegetação para externalizar os efeitos tectônicos das crises que abalaram sua vida. É muito apropriado: palavras geográficas para expressar emoções vulcânicas, a ligação do humano com a natureza concretizada através da passagem do tempo, que não poupa nem um, nem outro das transformações trazidas por ele.
Daí que temos uma canção intitulada “Salt Water” (literalmente, “água salgada”), em que Sheeran comemora - como Florence + the Machine fez anos atrás na belíssima “Nevet Let Me Go” - o abraço gélido das profundezas do oceano. Dessner, talvez pressentindo que a composição de Sheeran é um pouco repetitiva em seus motes melódicos, nos distrai dessa deficiência com uma combinação luxuosa de sintetizadores e teclados (os créditos do disco contam 4 tipos diferentes do instrumento!) que murmura por baixo dos vocais melodramáticos, emprestando charme insuspeito à canção.
Por falar em vocais, eles são o elemento do Subtract que mais demonstram a divisão entre o Sheeran popstar que o mercado criou e o Sheeran trovador romântico que está no seu coração. O single “Eyes Closed” busca equilíbrio entre o verniz mainstream do mago pop Max Martin e a sensibilidade indie de Dessner, com o cantor usando seus tons mais anasalados para harmonizar com a produção eletrônica de um (a ideia é claramente fazer outra “Shape of You”), e suas notas mais graves para dar destaque ao piano e guitarra incluídos pelo outro. O fato de que a canção é uma elegia machucada a um melhor amigo falecido, e não uma declaração romântico-sexual genérica, ajuda a ganhar a simpatia do ouvinte para os seus ganchos melódicos bem desenhados.
As autorreferências não acabam aí, vale apontar. “Life Goes On”, uma das duas composições solo de Sheeran no álbum, tem algumas ideias melódicas inteligentes, mas deve a primeira linha do seu refrão a “Thinking Out Loud” - se a ascensão de tom funcionou para o hit de 2014, deve funcionar de novo, parece pensar o músico. Já “Colourblind” combina ritmo de valsa com um piano estridente que soa como caixinha de música e um violoncelo bem dramático como cereja do bolo, receita quase idêntica a de “Perfect”, que liderou as paradas em 2017.
Essas repetições preguiçosas contrastam com os momentos mais ousados do Subtract, que indicam a vontade de Sheeran de explorar outros territórios musicais. “Curtains” coloca o britânico em um espaço de soft rock que não seria estranho a um 3 Doors Down ou a um Bryan Adams, a depender da referência temporal do ouvinte, mas que tampouco abandona a sensibilidade pop que ele adquiriu com o passar dos anos - é como se Charlie Puth aplicasse toda a sua afinidade por melodias “redondinhas” e radiofônicas ao disco mais recente de um desses medalhões do subgênero que eu gosto de chamar de “música de Antena 1”.
“Spark”, enquanto isso, é a faixa que melhor usa os teclados de Dessner, adicionando-os a backing vocals e bateria analógica para produzir um efeito que aproxima Sheeran, inesperadamente, do neosoul que resgata e moderniza o som da Motown, completo inclusive com uma bridge toda levada por orquestra. E a melhor do disco é também uma aposta arriscada: “Dusty” traz guitarra elétrica e bateria programada para o mundo de Sheeran, e conta com um riff de sintetizador adorável, resultando em uma canção que não faria feio em um disco do Owl City - leia isso como um elogio!
Do outro lado da moeda, “Borderline” deixa Sheeran nos impressionar com o seu falsete em um refrão bem composto, mas insiste em uma produção repetitiva de piano e violino que a essa altura (é a faixa 9 do disco) já deixou de impressionar ou emocionar. Pior ainda é “End of Youth”, que tenta aplicar o mito “Ed Sheeran também é rapper” (quando foi que nos convencemos disso, aliás?) à sensibilidade ultra dramática do disco, mas só consegue soar como uma canção de Hamilton que Lin-Manuel Miranda escolheu descartar de última hora, e com toda a razão.
Subtract também é, talvez ironicamente, um álbum que se estende muito mais do que deveria - e o testamento disso é o quanto ele perde a energia por volta da faixa 10. “Vega”, “Sycamore” e “No Strings”, todas com menos de três minutos de duração e musicalmente vazias, parecem estar aqui para fazer volume, na irritante tradição do “quanto mais conteúdo melhor” que dominou a indústria fonográfica na era do streaming. É uma pena, portanto, que seja justamente no marasmo de “Vega” que o músico escolha deixar sua confissão lírica mais verdadeira.
Em meio a uma das letras mais irrestritamente vulneráveis do Subtract, Sheeran vira-se abruptamente para uma metáfora astrológica no refrão, declamando: “Acendendo a noite, fomos feitos para ser estrelas/ Mas nos queima muito ser Vega”. A referência a uma das estrelas mais brilhantes do céu noturno soa, no inglês, muito como a palavra “vaguer” (literalmente, “mais vago”) - pode ser que seja uma coincidência fonética, mas é apropriado de qualquer forma.
Escondido no Subtract está o álbum de um músico que quer rejeitar a universalidade diluída que foi o próprio instrumento que ele usou para cavar o seu lugar na indústria. Chamar Dessner para a produção, fazer um álbum insistentemente machucado e melancólico, abrir mão dos ritmos de R&B que quase passaram a defini-lo como artista após os últimos álbuns - todas essas decisões criam um conflito de interesse mercadológico que Sheeran, por um motivo ou por outro, parece não estar totalmente disposto a enfrentar ainda.
O resultado é mais um disco de altos e baixos, que tenta colocar um talento imensurável dentro de, bom… um cálculo matemático.
Ano: 2023
Produção: Aaron Dessner, Fred Again, Max Martin, Shellback