Música

Artigo

Roger Waters em São Paulo

Uma quase loucura coletiva

27.03.2007, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H23
"Eu mesmo muitas vezes me senti próximo à loucura. Lembro-me de estar na cantina de Abbey Road, sentando à mesa com todo mundo, e subitamente não havia dor: tudo - a mesa, as pessoas em volta - desapareceu. Os tons tornaram-se pequeninos, e a sala parecia como se eu a estivesse vendo pelo lado contrário de um binóculo. Pensei comigo mesmo `opa, espera um minuto´. Não estava drogado. `Uau, é assim que se sentem os loucos´. Então levantei da mesa e resisti àquilo. Lentamente tudo começou a voltar a uma perspectiva mais normal. Não aconteceu de novo, mas na época eu estava certo de que era o começo de um colapso. Um colapso ao qual resisti e que nunca ocorreu de fato."

4

None

capa

None

roger

None

O depoimento de Roger Waters dado ao jornalista John Harris no livro The Dark Side of the Moon - Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd pode funcionar como ponto de partida para o que se viu na noite do dia 24 de março no estádio do Morumbi, em São Paulo. Foi por meio de um novo olhar, sob uma nova perspectiva, que o artista criou um dos maiores clássicos da história da música. Foi quase chegando à loucura que Waters produziu obras-primas - extraindo de si mesmo a essência que compõe o ser humano, que do outro ponto da corda, nada mais faz do que se maravilhar, e de certo modo se libertar, com o retrato tão bem pintado de sua própria figura.

As 45 mil pessoas presentes no estádio não foram até ali para ser surpreendidas, mas para assistir ao espetáculo que dá formas magnânimas a um álbum que nasceu para ser simples. Segundo o próprio Waters, o disco de 1973 procurava desesperadamente resgatar o Pink Floyd de uma viagem que parecia sem volta. Imersa em psicodelia e versando sobre temas nada palpáveis, a discografia do Pink Floyd até The Dark Side of the Moon tinha tudo para levar a banda a ser apenas um nome de enciclopédia, uma referência de uma época. Unindo-se a isso a sombra deixada como legado pela saída de Syd Barrett, líder e gênio criativo da banda até 1967, a única saída vislumbrada pelo Pink Floyd era uma espécie de auto-implosão para que a partir daí conseguisse nascer de novo. E o que parecia impossível tornou-se possível: com temas universais e inerentes a qualquer um, o álbum de 1973 se desenvolve por meio de letras diretas e melodias tão lindas quanto (ainda que menos complexas) as encontradas nos álbuns anteriores. E foi assim que nas três décadas que sucederam seu lançamento, o disco vendeu algo em torno de 30 milhões de unidades no mundo, permaneceu 724 semanas nas listas de álbuns mais vendidos dos Estados Unidos, e estima-se que no Reino Unido, terra natal da banda, uma em cada cinco residências tenha o álbum. Pelas contas da revista britânica Q é virtualmente impossível que se passe um minuto sem que The Dark Side of the Moon toque em algum lugar do planeta.

É com esse cenário que se tem idéia da responsabilidade de produzir uma turnê centrada em The Dark Side of the Moon. E é, de novo, baseado em preceitos fundamentais que Roger Waters trabalha. Ao propor apresentar The Dark Side of the Moon na íntegra, ele reconhece e respeita a obra máxima do Pink Floyd, procurando inserir novos elementos apenas no que circunda a música. Como ele mesmo confessou em entrevistas recentes, nada de novo é incluído simplesmente porque não há espaço para novidades em um álbum tão hermético. Não há possibilidade de deixá-lo melhor.

O que Waters espertamente faz é usar todo e qualquer aparato tecnológico disponível para ilustrar e envolver a música, esta sim o foco central de todas as atenções. A apresentação, com design de palco do mesmo criador da turnê de The Wall, Mark Fisher, é dividida em duas partes. A primeira, uma espécie de aquecimento, é iniciada com "In the Flesh?", faixa de abertura do outro clássico do Pink Floyd, The Wall, que ainda seria retomado várias vezes durante a noite. No telão, a assustadora marcha dos martelos vista no filme homônimo, dá noção da grandiosidade do show. "Mother", também de The Wall, dá seqüência à apresentação, seguida por "Set the Controls for the Heart of the Sun", do álbum de 1968, A Saucerful of Secrets, último a conter resquícios de Syd Barrett . O primeiro guitarrista e vocalista do Pink Floyd, falecido no ano passado, ganhou sutis homenagens em fotografias e vídeos transmitidos pelo telão, enquanto a banda tocava "Shine On You Crazy Diamond", clássico do Floyd do álbum Wish You Were Here, considerado um tributo à genialidade do ex-membro da banda. Completando a trinca do álbum de 1975, "Have a Cigar" e a faixa título, acompanhada em coro pelo estádio inteiro.

Não tão sutil, mas inexplicavelmente menos falso que a maneira abordada por outros artistas, é o modo como as músicas de teor político e social são apresentadas. A guerra, tema onipresente na vida de Roger Waters, que perdeu o pai durante a Segunda Guerra Mundial, não é simplesmente um tema, mas um apelo sensorial. Efeitos sonoros perfeitos (bombas, aviões, comandos em altos brados) ouvidos em volta de todo o estádio e imagens contundentes e diretas (tanques, bombardeios, Ronald Reagan, Osama Bin Laden, Joseph Stalin, Saddam Hussein e George W. Bush) complementam as músicas, provocando a sensação sufocante de se estar efetivamente em um campo de batalha.

As músicas desta parte do show são "Southampton Dock" e "The Fletcher Memorial Home", do álbum de 1983, The Final Cut, "Perfect Sense", do solo de Waters, Amused to Death, "Leaving Beirut" (lançada apenas como single em 2004), contada em forma de história em quadrinhos desenhada por Neal Adams e Bill Sienkiewicz que fala do período em que Waters passou na capital do Líbano, onde foi extremamente bem recebido por uma família local, e "Sheep", do álbum Animals, de 1977. Durante a última, o famoso flying pig da capa de Animals, toma vida em forma de um porco inflável cor-de-rosa gigantesco, que é levado para um passeio por todo o estádio por um homem vestido de açougueiro. O porco ostenta frases, palavras soltas e perguntas como "Medo constrói muralhas", "Políticos", "Ordem e progresso?", "Bush, o Brasil não está à venda", "Salve a Amazônia" e "Assassinos, deixem nossas crianças em paz". No centro da pista, o porquinho ganha um final feliz e é solto pelos ares de São Paulo. O público assina embaixo e lava a alma, enquanto Roger Waters deixa o palco para um breve intervalo que precede The Dark Side of the Moon.

"Uma peça para lunáticos variados"

A lua nova que pairou sobre o palco durante toda a primeira parte do show deu lugar a uma imensa lua no telão que ia crescendo com a passagem do tempo. Após 15 minutos de espera, era a hora de escutar na íntegra a apresentação do álbum que quase se chamou "Eclipse - uma peça para lunáticos variados" porque uma outra banda britânica, Medicine Head, lançou um pouco antes da obra-prima do Pink Floyd um álbum intitulado exatamente de The Dark Side of the Moon. O trabalho do Medicine Head teve vendas fraquíssimas, então o aval foi dado para que o Floyd lançasse o seu próprio The Dark Side of the Moon, disco que lida com o tema da loucura e questiona se a suposta insanidade de alguns pode ser equacionada com a carga emocional dos "sãos".

De acordo com o seu principal autor, The Dark Side of the Moon foi criado a partir da seguinte reflexão: "Ao elevar as invenções humanas como tempo e dinheiro a um plano em que elas acabaram por nos controlar, perdemos nosso conceito do que é ser humano - empáticos, compassivos, sociáveis - e chegamos a uma maneira tão corrompida de pensar que a loucura estava próxima de se tornar uma conseqüência lógica." E o objetivo era "voltar para uma espécie de ser gestalt - o rebelde ou a criança dentro de todos nós - que incorpora o que é valioso em nós, em nossa inocência, quando somos concebidos, e o que se torna subvertido com a vida. As pressões da vida moderna e todos os elementos pelos quais a gente passa e que conspiram para tornar algumas pessoas insanas." E como alcançar este objetivo, Mr. Waters? Por meio do "potencial que os seres humanos possuem para reconhecer a humanidade do outro, e sua resposta a isso, com empatia, e não antipatia."

Muito bem. Com as risadas doidivanas que abrem o álbum sendo ouvidas pra lá e pra cá nas arquibancadas, foi dado o sinal para que cada um se libertasse por uma hora e meia a sua própria maneira. Waters e banda deram início à apresentação de The Dark Side of the Moon, seguindo à risca a ordem das faixas no disco, e o que se viu foi 45 mil pessoas acompanhando cada um dos versos das dez faixas que compõem o álbum em uma espécie de catarse coletiva (empatia é pouco). Algumas das músicas originalmente cantadas por David Gilmour foram interpretadas com competência pelo guitarrista Dave Kilminster e pelo tecladista e guitarrista Jon Carin. "Speak to Me" vem quase grudada com "Breathe", "Time" e o seu cuco/batida de coração foi uma das mais aplaudidas pelo público. A tensão do que seria feito com os vocais femininos de "The Great Gig in the Sky" deu lugar a um suspiro de alívio quando uma competente backing vocal fez as três vozes que originalmente aparecem na música. Em seguida, "Money", que em uma sacada genial é tocada enquanto o próprio álbum do Floyd aparece no telão. Abre parênteses: The Dark Side of the Moon é apontado por Roger Waters como o álbum que deu início ao processo de separação da banda: "Nos apegamos uns aos outros por muitos anos depois, principalmente por medo do que poderia estar além, e também por relutarmos em matar a galinha dos ovos de ouro. Depois do disco nunca mais houve a mesma unidade de propósitos. Trabalhar juntos lentamente se tornou menos agradável e mais um veículo para minhas idéias. Tinha pouco a ver com os outros, até isso se tornar insustentável." É só analisar a discografia da banda a partir do álbum de 1973 para ver que ele tem razão. Os trabalhos do Floyd foram ficando cada vez mais centrados nos temas pessoais de Waters, culminando em The Final Cut, que ganhou nos créditos a seguinte frase: "Um réquiem para o sonho do pós-guerra, por Roger Waters, executada por Pink Floyd". Fecha parênteses.

Dando seqüência ao show, "Us and Them" tocada com maestria, com destaque para o saxofone, "Any Colour You Like" e "Brain Damage" funcionam como uma introdução para o grand finale do álbum, "Eclipse", momento em que um prisma idêntico ao que ilustra a capa de The Dark Side of the Moon surge no topo do palco e emite lasers coloridos pelas arquibancadas.

Após apresentar os músicos e fazer os agradecimentos de praxe, Waters deixa o palco por alguns instantes e volta para o bis com 15 meninas do Projeto Guri. Este, ao lado do clichê bandeira do Brasil no final do show, foi o único momento de causou certo constrangimento no estádio. Para quem esperava que as meninas fizessem o coro de "Another Brick in the Wall Part 2", uma grande decepção: vozes infantis em flashback funcionaram como trilha sonora para a coreografia das adolescentes, que apenas dançavam em cima do palco. As músicas que fecharam o bis, assim como "Another Brick in the Wall Part 2", foram todas extraídas de The Wall. Na seqüência: "Bring the Boys Back Home", "Vera" e o clássico "Comfortably Numb", que fechou a noite.

"Quando digo `vejo você no lado escuro da lua´ o que quero dizer é: se você sente que é o único... que parece louco, pois pensa que tudo é maluco, você não está sozinho."

De fato, dificilmente algum dos presentes se sentiu sozinho. E certamente todos agradeceram a Roger Waters por ele ter resistido à sua própria loucura, criando pequenas obras-primas que nos ajudam a parecer normais.

* Fonte de pesquisa e trechos de entrevistas: The Dark Side of the Moon - Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd, livro de John Harris.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.