A tortura para ele não é uma punição, mas uma benção. Sobreviver a ela significa enxergar com dignidade a beleza de estar vivo - afinal, não existe nada depois da morte.
Não estamos falando de Jigsaw e Jogos Mortais, como pode parecer, mas de Zé do Caixão e Encarnação do Demônio, o fecho da trilogia do mais conhecido personagem do escasso gênero do terror nacional, iniciada em 1963 com À Meia-noite Levarei sua Alma e emendada em 1966 com Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Se Jigsaw é o símbolo do que se convencionou hoje chamar torture porn, Zé do Caixão é seu avô safado.
zé do caixão
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O roteiro co-escrito por Denisson Ramalho (do curta de horror Amor Só de Mãe, que escandalizou festivais Brasil afora) e dirigido por José Mojica Marins inclui todos os desaforos aos bons costumes que um orçamento de 2 milhões de reais - valor que em meio século de carreira Mojica jamais havia levantado - consegue pagar. Tem cabeça afundada em tonel de baratas, mulher que come carne da própria nádega, outra que sai de dentro de um porco e até ratazana enfiada na vagina. Gastaram com carcaças e animais vivos todo o dinheiro que economizaram nos figurinos. (Ainda assim as poucas pessoas com roupas vestem Herchcovitch.)
A cena de O Albergue 2 em que a mulher nua se banha no sangue da vítima, tão falada ano passado, parece uma provocação pueril se comparada com a liberdade com que Mojica filma sexo e violência. O que Encarnação do Demônio tem de mais extremo, porém, não é nada gráfico, mas sua ideologia: a ridicularização das religiões organizadas (como diz Zé do Caixão, "Deus não foi convidado para a festa", e o padre que critica a tortura mas se auto-flagela só pode ser um hipócrita), da sociedade organizada (Zé do Caixão deixa a prisão depois de 40 anos caçoando do sistema carcerário) e o uso de drogas (o coveiro sempre fuma um cachimbo antes de ter suas alucinações).
A roleta russa antes que se iniciem os "festejos" é emblemática: um jogo de entrega e morte para celebrar a liberdade e a vida. Em sua busca pela mulher perfeita, que lhe dará o filho que ele tanto quer - afinal, "só o sangue é eterno" -, Zé do Caixão é antes de tudo um ateu pragmático. Os filmes de terror que estamos acostumados a ver no circuito trabalham com a aceitação do oculto (leva-se um remake de suspense oriental inteiro para explicar de onde saem as almas penadas), e o oculto é a primeira coisa que Encarnação do Demônio renega.
Só essa questão do pragmatismo já serve para livrar o filme daquelas explicações sem fim que amarram os filmes hollywoodianos. Não há nada para se explicar no filme de Mojica, há apenas a vivência, o momento. Nesse ponto, é injusto dizer que seu filme se filia ao torture porn de um Eli Roth. Todo instante de tortura de Encarnação do Demônio é materialização da ideologia do coveiro. Em um Jogos Mortais, por exemplo, a câmera não mostra Jigsaw assistindo às torturas. Já aqui a câmera o tempo inteiro fecha o close-up nos olhos de Mojica, olhos pesados e brilhantes de quem tem uma única crença, a crença na experiência carnal, individual e desmistificada.
Ano: 2008
País: Brasil
Classificação: 18 anos
Duração: 95 min
Direção: José Mojica Marins
Roteiro: Dennison Ramalho, José Mojica Marins
Elenco: José Mojica Marins, Jece Valadão, Adriano Stuart, Milhem Cortaz, Rui Rezende, José Celso Martinez Corrêa, Cristina Aché, Helena Ignez, Débora Muniz, Thaís Simi, Cleo de Paris, Nara Sakarê, Giulio Lopes, Eduardo Chagas, Luís Melo