Globo de Ouro

Créditos da imagem: Michael Tran / AFP

Oscar

Artigo

O Globo de Ouro ainda importa? Lamento informar, mas a resposta é sim

Mesmo virtualmente cancelada, premiação ainda é bem-vista aos olhos da indústria e tem méritos relevantes

Omelete
9 min de leitura
07.01.2024, às 07H55.
Atualizada em 25.05.2024, ÀS 19H36

Desde 2020, o Globo de Ouro parece enfrentar uma crise de credibilidade interminável. Quase todo ano, seja perto do anúncio dos indicados ou da cerimônia em si, é comum surgirem tweets e artigos exigindo que as pessoas parem de dar atenção ao prêmio. Um comportamento compreensível e, de fato, justo, especialmente diante de todas as acusações polêmicas, controvérsias e outros problemas sistêmicos que permeiam o evento. Mas apesar do cancelamento online ser pauta recorrente em relação ao Globo de Ouro, isso não muda a grande realidade: sim, a premiação ainda é relevante – queira você ou não.

O Omelete tem um excelente artigo que ajuda a entender melhor um pouco sobre a crise de credibilidade do prêmio dado agora pela Eldridge Industries, subsidiária da Dick Clark Productions, produtora de televisão. Mas caso você tenha perdido o fio da meada, basicamente, no fatídico ano de 2020, uma reportagem do Los Angeles Times trouxe à tona diversos problemas internos na Hollywood Foreign Press Association (Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood), responsável por criar e conceder os prêmios até o ano passado. Dentre os problemas evidenciados, incluem-se questões como o racismo interno na associação, a compra de votos e comportamentos inadequados por parte de seus representantes, entre outros fatores que contribuíram para prejudicar a reputação do prêmio em um momento crucial para Hollywood.

Nesse período, a indústria cinematográfica estava empenhada em criar um ambiente mais diversificado e respeitoso para as minorias, especialmente após as acusações impulsionadas pelos movimentos #MeToo e #OscarSoWhite. Diante disso, a indústria optou claramente por se distanciar da premiação. Para citar grandes exemplos, Tom Cruise chegou a devolver seus Globos à entidade, enquanto o Prime Video e a Netflix anunciaram um boicote em 2021. Não teve outra, e em 2022, a NBC cancelou a transmissão do prêmio. No entanto, os membros internos da HFPA agiram rapidamente para reverter a situação, expandindo o corpo de votantes e implementando diretrizes rigorosas para condutas comportamentais.

Tom Cruise venceu um Globo de Ouro pelo filme Magnólia
Tom Cruise venceu um Globo de Ouro pelo filme Magnólia (New Line Cinema/Reprodução)

A pergunta que pairava era se essas medidas seriam suficientes. No final de 2022, quando as indicações para a edição de 2023 foram anunciadas, parecia que não: Hollywood estava notavelmente silenciosa, com celebridades demorando – ou até mesmo se recusando – a celebrar as nomeações publicamente. Seria o fim do Globo de Ouro? Aparentemente sim. Mas, um mês depois, no entanto, o tapete vermelho surgiu lotado. Brad Pitt, Margot Robbie, Austin Butler, Ana de Armas, Jenna Ortega, Eddie Murphy, Jamie Lee Curtis, Colin Farrell, Steven Spielberg, Ryan Murphy, Jessica Chastain, Jennifer Coolidge, Andrew Garfield, James Cameron e a lista continua.

Se astros desse calibre estiveram presentes e prontos para participar daquela cerimônia, é porque a entidade estava aparentemente perdoada. Vale lembrar que a cerimônia dos Globos de Ouro ocupa um lugar de grande prestígio na temporada de premiações, pois é o evento que dá início às celebrações desse período. 

Para compreender melhor a importância do Globo de Ouro, é necessário retroceder um pouco no tempo. Nos anos 1960, os troféus começaram a ser exibidos na televisão, mas de uma forma menos tradicional que os Oscars.

Por meio de um jantar, geralmente realizado no luxuoso Beverly Hills Hotel, astros do cinema e da televisão se reuniram para fazer discursos e homenagear uns aos outros em um evento com comida e bebida liberada. Por mais que pareça um motivo trivial, essa celebração sem muitos "freios" – isto é, celebridades bêbadas, reunidas e alegres – passou a ser vista como um dos momentos mais especiais dos eventos pré-Oscar. Com isso, a cerimônia logo conquistou o público e a indústria, tornando-se um evento obrigatório e descontraído, especialmente por ajudar a preparar o terreno antes do Oscar e por oferecer uma oportunidade de marketing extra para produções tanto do cinema quanto da televisão.

Glenn Close em A Esposa
Sony Pictures Classics/Divulgação

Lucros e narrativas

Isso é crucial, pois para conquistar um Oscar – ou até mesmo um Emmy –, os envolvidos precisam estar no topo da mente dos votantes. A maneira de ser lembrado é ser visto. Ganhar um Globo de Ouro, embora não seja um requisito absoluto para vencer um Oscar, é fundamental para permanecer na lembrança durante os momentos-chave da votação para o cobiçado prêmio dourado. Um exemplo notável dessa dinâmica ocorreu no início de 2019, envolvendo a atriz Glenn Close. Quase que totalmente desconsiderada na corrida pelo prêmio de Melhor Atriz, pelo qual concorria com o filme A Esposa, um filme pouco lembrado pela crítica e que arrecadou um pouco mais de US$ 20 milhões, Close não ficou de fora do Oscar por um triz. O Globo de Ouro que ela venceu durante o período alterou drasticamente a trajetória de sua narrativa durante o período de votação para o prêmio da Academia. Isso se deveu, em parte, a um discurso que viralizou na Internet depois que a eterna Cruella DeVil recebeu seu Globo.

Visivelmente surpresa e emocionada, especialmente considerando que a favorita da categoria era Lady Gaga por Nasce Uma Estrela, Glenn Close expressou sua gratidão à HPFA pela honra. Durante seu discurso, ela fez uma retrospectiva de sua carreira, abordou as razões pelas quais sempre se sentiu subestimada pela indústria e conseguiu emocionar tanto quem estava presente quanto quem não estava naquele salão de festas. Nas semanas seguintes, graças ao impacto de seu discurso, ela também recebeu reconhecimento no Critic's Choice e no SAG Awards, concedido pelo Sindicato dos Atores de Hollywood.

Apesar de não ter vencido o Oscar – que foi para Olivia Colman por A Favorita –, Glenn Close testemunhou um renascimento em sua carreira. Para completar, foi eleita, pela primeira vez na vida, como uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Time. Uma trajetória emocionante, impulsionada praticamente pela vitória no Globo de Ouro, que ajudou a mantê-la em mente durante os momentos mais importantes da temporada de premiações: isto é, o momento em que os principais troféus são entregues, momento que acontece logo no início do ano.

É completamente compreensível achar que a temporada de premiações como um todo é algo fútil e debochar de sua existência – especialmente por esse caráter de concurso de popularidade que ela ajuda a enraizar, mas ela é muito importante para os estúdios, distribuidoras e plataformas promoverem os seus filmes e séries para o final de um ano e o início de outro. Os prêmios, querendo ou não, dão mais visibilidade a produções, impulsionando os seus lucros. Existem muitos estudos e pesquisas que comprovam isso, aliás.

Sônia Braga já foi indicada três vezes ao Globo de Ouro, uma delas como Melhor Atriz Coadjuvante por O Beijo da Mulher Aranha [imagem]
Sônia Braga já foi indicada três vezes ao Globo de Ouro, uma delas como Melhor Atriz Coadjuvante por O Beijo da Mulher Aranha [imagem] (Embrafilme/Reprodução)

Um exemplo notório é o de Beleza Americana (1999). Após conquistar vitórias no Oscar, o filme estrelado por Kevin Spacey viu um aumento significativo em seus lucros de bilheteria. Inicialmente lançado em 706 salas de cinemas nos Estados Unidos, o filme teve seu mercado expandido pelos prêmios. Segundo a Variety, como resultado, ele acabou sendo exibido em mais de 1990 salas, após conquistar reconhecimento da Academia. Ao veículo, Jim Tharp, da DreamWorks, responsável pela distribuição do longa, disse à época que o número de vitórias do Oscar determinaria até onde o filme poderia chegar em termos de bilheteria. "Definitivamente, temos a flexibilidade de ampliá-lo [nas salas] um pouco mais à medida que nos aproximamos do Oscar", comentou.

Escolhas inspiradas

Outro aspecto que contribui para explicar a vitalidade e a importância do Globo de Ouro é a maneira como os prêmios são categorizados. Ao contrário do Oscar e de forma bastante semelhante ao Emmy, as categorias são divididas entre filmes de drama e comédias/musicais. Vale ressaltar que, embora os musicais tenham perdido parte de sua força nos dias de hoje, eram bastante significativos quando a premiação foi estabelecida. Essa abordagem oferece a oportunidade de indicar mais atores e reconhecer nomes com menos chances de serem lembrados pelo Oscar, especialmente no caso de filmes de comédia.

Campanhas para Maestro, Charles Melton e Jennifer Lawrence, dando foco no Globo de Ouro (Reprodução/Montagem)
Campanhas para Maestro, Charles Melton e Jennifer Lawrence, dando foco no Globo de Ouro (Reprodução/Montagem)

Apesar de os votantes do Globo de Ouro terem feito escolhas por vezes pouco convencionais para definir o que é considerado um filme de comédia (lembrando que O Turista, com Angelina Jolie e Johnny Depp, e Perdido em Marte, com Matt Damon, foram indicados na categoria em tempos recentes), o grupo também tem a capacidade de fazer escolhas mais inspiradas e menos centradas nos grandes nomes da indústria, em comparação com o prêmio do Oscar. Neste ano, por exemplo, Alma Pöysti, uma atriz com zero chances de chegar ao Oscar, foi indicada como Melhor Atriz pelo comovente Folhas de Outono, um filme do finlandês Aki Kaurismaki. Essa lembrança ajuda a elevar o perfil de Pöysti perante à indústria, criando a chance de oferecer a ela mais oportunidades no futuro.

Os Globos de Ouro também mostram uma preferência por reconhecer nomes que foram anteriormente ignorados pelo Oscar, nunca tendo conquistado o prêmio. Entre esses, incluem-se Adam Sandler, Cameron Diaz, Jim Carrey, Meg Ryan, Jennifer Aniston, Dennis Quaid, Richard Gere, John Goodman, Jeff Daniels, Maria Bello, Mia Farrow, John Cusack, Emily Blunt, e outros. Além disso, se explorarmos esse aspecto, e nos permitirmos um pouco de bairrismo, é possível observar que os Globos de Ouro foram significativamente mais generosos com o cinema brasileiro. Produções importantes de nossa história, que foram negligenciadas pelo Oscar, foram lembradas por essa premiação, como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980), Abril Despedaçado (2001) e Central do Brasil (1998) – este último, aliás, representa nossa única vitória como filme internacional em um grande prêmio de Hollywood. Bem como Fernanda Montenegro, Wagner Moura, Sônia Braga e Daniel Benzali, que já foram nomeados ao prêmio.

Enfim, perdoados?

Em 2023, o Globo de Ouro passou por mudanças significativas. Primeiramente, a premiação foi adquirida pela Dick Clark Productions e pela Eldridge, tornando-se uma associação com fins lucrativos e marcando o fim da HFPA. Com essa transição, os membros agora recebem salários e desempenham papéis mais ativos, avaliando filmes e séries de TV submetidos para consideração no Globo de Ouro, participando do processo de votação para indicados e vencedores, criação de conteúdo para o site da organização e gerenciar materiais relacionados ao evento e à história do grupo.

Além disso, sob o novo regime, seus membros agora são obrigados a divulgar quaisquer possíveis conflitos de interesse, recusar presentes e mimos de estúdios. A NBC, que havia transmitido a premiação desde 1996, encerrou seu contrato, transferindo a responsabilidade para a CBS. Embora essa mudança pudesse levantar (mais) questões sobre a credibilidade do prêmio, a realidade é o oposto. Com membros mais envolvidos e responsáveis, a premiação agora tende a adquirir um caráter mais profissional, com menor incidência de compra de votos e profissionais mais dedicados à avaliação das produções indicadas e premiadas. Essa transformação tem o potencial de melhorar a reputação da premiação perante a imprensa especializada, os cinéfilos e, especialmente, a indústria.

Este ano, o caráter de campanhas também não mudou. Bastava entrar em qualquer site internacional voltado para o mundo do entretenimento para ver os banners de For Your Consideration (Para Sua Consideração), mirando na oportunidade de arrancar indicações e prêmios nos Globos de Ouro, algo que, segundo Stephen Follows, pesquisador de dados da indústria cinematográfica, estima custar algo em torno de US$ 14 milhões. Nas entrelinhas, isso deixa claro que ainda se trata de um evento nos olhos dos grandes estúdios. Ainda não estão convencidos? Bom, então basta a ver a lista dos apresentadores do evento este ano: Jodie Foster, Kate Beckinsale, Kevin Costner, Naomi Watts, Orlando Bloom, Elizabeth Banks, Don Cheadle, Hunter Schafer, Jonathan Bailey, Mark Hamill, Ray Romano, Keri Russell, Annette Bening, Amanda Seyfried, America Ferrera, Angela Bassett, Daniel Kaluuya, Florence Pugh, Hailee Steinfeld, Issa Rae, Simu Liu, Julia Garner, Justin Hartley, Michelle Yeoh e Will Ferrell.

Querendo ou não, o Globo de Ouro ainda faz parte de um sistema promovido por Hollywood para dar um tapinha nas próprias costas visando maior lucratividade dos seus projetos. Não faz sentido uma indústria pautada em cima de imagem, luxo e do inalcançável desperdiçar a oportunidade de ter mais um espaço para exibir seus feitos e conquistas. E enquanto ela ainda seguir por essa linha de raciocínio, é correto afirmar que o Globo de Ouro se manterá fixo no calendário e nas discussões sobre cinemas todos os anos – seja ele amado ou odiado.

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