Opinião: Oscar indica caricatura latina de Bardem em Apresentando os Ricardos

Créditos da imagem: Javier Bardem em cena de Apresentando os Ricardos (Reprodução)

Oscar

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Opinião: Oscar indica caricatura latina de Bardem em Apresentando os Ricardos

Filme continua costume problemático de escalar espanhóis como latinos em Hollywood

08.02.2022, às 16H47.

Apresentando os Ricardos marca a segunda vez que o espanhol Javier Bardem é indicado ao Oscar por interpretar um personagem latino. Mas Antes do Anoitecer, o filme que trouxe a primeira nomeação dessa lista, não poderia ser mais diferente do longa de Aaron Sorkin. Em Anoitecer, Bardem vive o poeta e escritor cubano Reinaldo Arenas, em um retrato sensível e caloroso de um homem e um artista que desafiou preconceitos de sua época e pagou o preço por isso.

Em contrapartida, Apresentando os Ricardos posiciona o ator e cantor Desi Arnaz, também de origem cubana, como uma caricatura quase grotesca dos maiores estereótipos do homem latino na mídia americana - e não muito mais do que isso. O filme se concentra em uma semana de produção de I Love Lucy, a revolucionária sitcom que Arnaz estrelou e produziu ao lado da esposa Lucille Ball (Nicole Kidman) entre 1951 e 1957.

Não só I Love Lucy foi importante por trazer o protagonismo e controle criativo feminino em uma era ainda nascente da televisão, como também por colocar Arnaz, um homem latino, em posição de destaque na frente e atrás das câmeras - e, inclusive, por trazer um casamento interracial para as salas de estar de milhões de casas pelo país, mais de uma década antes do caso Loving vs. Virginia (de 1967) tornar inconstitucionais as leis que barravam esse tipo de relação nos EUA.

Para os efeitos do filme de Sorkin, no entanto, Arnaz é uma figura mais simbólica do que propriamente humana. O diretor e roteirista pendura nele todas as características do latin lover, como eram chamados os astros de origem latina (e vamos discutir um pouco sobre isso mais a frente no texto) na Hollywood clássica. Arnaz é um homem de sangue quente, nos diz Apresentando os Ricardos, obcecado por dança e ritmo, incapaz de controlar seu ímpeto sexual e seu temperamento.

O verdadeiro Desi Arnaz, em cena de I Love Lucy (Reprodução)

Por outro lado, ele é também dono de um carisma selvagem, indomável, e acima de tudo destreinado. “Desi manda bem desde a primeira leitura do roteiro”, aponta Lucille em certo ponto do longa. “Eu preciso de uma semana inteira para ser engraçada”. A ideia pode parecer elogiosa, mas esconde um insulto por baixo dela: se é o próprio “sangue latino” de Desi que o torna magnético para as mulheres e irresistível em tela, a sua arte é nata, não resultado de esforço, e por isso menos meritória - ele só chega na frente das câmeras e age como ele mesmo! Ele não é um ator, é um astro!

É claro que todas essas coisas, virtudes e defeitos incluídas, podem ser encontradas em qualquer pessoa, incluindo as latinas. O problema é que personagens latinos são representados assim o tempo inteiro em Hollywood, e Apresentando os Ricardos não adiciona nada à receita que nos convença que há uma pessoa de verdade por trás desse amontoado de clichês. E Bardem é um ótimo ator, mas nem ele é capaz de transformar um texto tão raso em uma performance digna de Oscar.

Latino vs. hispânico

O debate sobre a validade de escalar atores espanhóis para interpretar personagens latinos é um que não chega de forma muito íntegra em Hollywood. Isso fica evidente, inclusive, na resposta de Sorkin às críticas pela escalação de Bardem em seu filme: o diretor e roteirista contou ao The Hollywood Reporter que ele e sua diretora de elenco chegaram a considerar, por exemplo, um ator brasileiro para o papel de Desi, mas que ele “foi informado” que brasileiros não são considerados “hispânicos”, pois falam português.

A confusão entre os termos latino e hispânico é usual nos EUA, muito porque, institucional e culturalmente, os americanos não estão muito interessados em entender e respeitar culturas que não sejam a sua. Daí a aglutinação de falantes de espanhol da Europa com falantes de espanhol da América Latina, como se dividissem marcadores culturais mais profundos do que, por exemplo, os falantes de espanhol da América Latina e os falantes de português da mesma região do mundo.

Rodolfo Valentino, o primeiro "latin lover", era italiano (Reprodução)

Lá na Hollywood antiga, a ideia de “latino” era ainda mais expansiva para os estúdios. Rodolfo Valentino, considerado amplamente o primeiro latin lover, era um homem italiano; Charles Boyer, outro latin lover clássico, era francês. Desde o princípio, portanto, o apelo de trazer esses personagens para o mundo ficcional da indústria americana era o do estrangeiro, do “exótico”, do desconhecido. Os detalhes não importam, e tampouco a coerência de aglutinar culturas diferentes em um mesmo arquétipo.

Ser entendido e tratado dessa forma, é claro, é objetificante. Por definição, quando negamos especificidade e individualidade a uma pessoa, estamos negando a ela parte crucial da sua humanidade. Continuar escalando espanhóis como Bardem para interpretar personagens latinos, continuar escrevendo-os de um ponto de vista estereotipado, e continuar recompensando tudo isso com indicações para o prêmio de cinema mais importante da indústria é endossar essa desumanização.

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