A garota caminha por um beco pouco iluminado. O som de seus passos preenche o vazio, anunciando o perigo iminente. O monstro surge, bem como a trilha sonora, a menina solta um grito estridente, prestes a ser estraçalhada pela criatura. Filho e neto de roteiristas, Joss Whedon conhecia bem a cena padrão dos filmes de terror e resolveu criar sua própria versão dela, uma em que a garota executa uma perfeita voadora e o monstro é quem leva a pior. Nascia ali Buffy: A Caça-Vampiros, 20 anos depois ainda foco da paixão dos fãs e um dos programas de TV mais exaustivamente discutidos do meio acadêmico como representante do novo feminismo.
A história seria diferente se a personagem se resumisse ao longa de 1992 com Kristi Swanson e um ainda desconhecido Ben Affleck como figurante (saiba mais). Whedon por diversas vezes apontou que a produção se distanciou de seu roteiro, transformando-se numa comédia em lugar da história de uma garota poderosa lutando contra forças do mal. Transferida para a TV, Buffy reassumiu as características determinadas por seu criador, embora mantenha a conexão com o longa. Segundo a “bíblia” da série, após os eventos do filme, Buffy (agora vivida por Sarah Michele Gellar) muda-se com a mãe para a pequena Sunnydale em busca de uma vida normal. Ironicamente, acaba na cidade localizada sobre a Boca do Inferno, um ponto de conexão entre dimensões que atrai todo o tipo de criatura demoníaca. No universo criado por Whedon, desde os tempos antigos uma garota é destinada a ser a Escolhida, a Caçadora responsável por defender a humanidade matando os monstros. Buffy é a predestinada da vez e uma nova Caçadora só será ativada quando ela morrer. A missão é supervisionada por um Guardião, no caso de Buffy o britânico Giles (Anthony Head), subordinado ao Conselho de Guardiões, grupo formado há séculos para comandar a luta contra os seres do mal.
Embora ansiosa por uma vida de adolescente comum, Buffy assume a responsabilidade que lhe foi destinada, e apesar de contar com a ajuda de seus amigos Willow (Alyson Hannigan) e Xander (Nicholas Brendon), deixa claro que a carga lhe pertence. Sua posição de heroína defensora da humanidade a alinha com a figura da dama/donzela guerreira que surge em momentos excepcionais em oposição à figura tradicional do herói masculino o que a posicionou como ícone feminista. Ao mesmo tempo, seu visual de menina bonita é fonte de críticas por atender às exigências tradicionais da indústria da TV, análise que deixa de lado a gênese da personagem: uma garota que visualmente seria escalada como vítima é transformada em matadora de monstros.
Kristy Swanson como Buffy no filme de 1992
Misto de ação, fantasia, horror e aventura, a série explora as dores e dramas da passagem para a vida adulta pela metáfora. O colégio fica sobre a Boca do Inferno porque infernal é a experiência do ensino médio, ou assim foi para Joss Whedon, a mãe de Buffy ignora a vida dupla da filha num retrato da incapacidade dos adultos de saber ou entender o que se passa com seus filhos adolescentes, o Conselho de Guardiões seguro em seu gabinete enquanto a caçadora arrisca a vida reflete os comandos militares enviando soldados para batalhas sob falsa motivação. Em seu romance, Buffy inicia um relacionamento com o vampiro Angel (David Boreanaz) como tantas outras garotas e mulheres já o fizeram, sabendo que aquele é o homem errado. Mas Buffy é capaz de afastar-se de Angel quando ele deixa de ser o homem pelo qual ela se apaixonou e na segunda temporada ela o despacha para o inferno para proteger a humanidade, reforçando sua posição de exemplo feminino positivo.
Outro elemento subversivo da série é a importância dada à pesquisa e ao conhecimento como atos de igual valor à força e habilidade física. Longe de um lugar esquecido, a biblioteca é um dos principais cenários da série e a busca por informações é crucial para o sucesso da equipe. Conhecimento é também essencial para usufruir do fluxo constante de citações e referências à cultura pop que vão do bordão do robô de Perdidos no Espaço numa luta a comparações com Clark Kent quando o assunto é a vida dupla de Buffy, passando por Spike, o vampiro de visual roqueiro dizendo que não quer o fim do mundo porque os humanos são para ele “McLanches Felizes com pernas”. Jornadas nas Estrelas, As Panteras, James Bond, Star Wars, nenhuma série, filme, livro ou elemento cultural está fora dos limites para Whedon e sua equipe de roteiristas.
Nem a gramática, que inclui neologismos, inversões e trocas de categorias das palavras numa linguagem específica da série, o Buffyverso . Nela, Buffy ironiza o politicamente correto perguntando se deve chamar Angel de “Americano morto-vivo” no lugar de vampiro e adverte Giles para que não tente “Scully me”, uma referência à personagem de Arquivo X conhecida por seu ceticismo e ao mesmo tempo o uso de um substantivo como verbo. Criativa e rápida, a linguagem da série embrulha os temas dramáticos e agrega mais um nível de interesse ao programa que nasceu direcionado ao público adolescente, mas conseguiu não apenas apelar a outras faixas etárias, mas também manter-se ponto de discussão mais de uma década após deixar de ser produzido, com planos para ser ressuscitado.
Todas as sete temporadas de Buffy: A Caça-Vampiros estão disponíveis na Netflix.