O que é uma Boneca Russa, afinal? No primeiro ano da série da Netflix, o conceito do brinquedo tradicional do país euroasiático, em que uma boneca oca é colocada dentro da outra, servia como uma analogia meio trôpega para a situação de Nadia (Natasha Lyonne), que se via presa em um loop temporal no dia de sua morte. As “múltiplas” Nadias que morriam e ressuscitavam, voltando ao mesmo banheiro na mesma festa de aniversário infernal, portanto, eram a tal boneca russa da história. Simples, né?
Bom, na segunda temporada da série, que chega quase três anos depois à plataforma de streaming, a coisa é muito mais complicada. Sem entregar demais dos detalhes da trama, desta vez Nadia e seu colega de loop Alan (Charlie Barnett) encontram uma anomalia temporal no metrô de Nova York que os permite visitar o passado de suas famílias e viver em primeira mão as idas e vindas do destino que definiram direta ou indiretamente, décadas atrás, muito de suas personalidades e perturbações.
Isso abre espaço, é claro, para uma interpretação diferente do título Boneca Russa. Nas mãos de Lyonne (que escreve 4 episódios da temporada e dirige 3), esta é uma história sobre como os nossos pais, avôs, tios e amigos vivem dentro de nós - não da forma metafísica e literal que a série concebe, é claro, mas de uma forma muito mais crível: através das decisões que eles tomaram, em sua suprema imperfeição de meros seres humanos, que por suas vezes moldaram as decisões que nós somos capazes de tomar, em nossa afeição por eles e pelo que eles criaram dentro de nós.
Há um carinho óbvio na forma como Lyonne conduz o espectador a essa conclusão. Na altura do terceiro capítulo da temporada, o tocante “Brain Drain”, fica claro que esta nova versão de Boneca Russa não está nem aí para te impressionar, explodir sua cabeça, te deixar boquiaberto de surpresa. Ao contrário, o que ela quer é que você faça as pazes com o caos (Nadia e Alan já fizeram, nos mostra a série logo no comecinho) e aceite caminhar com ela gentilmente, de mãos dadas, por mais uma viagem sentimental pelos dilemas e dúvidas que nos formam.
Ainda melhor que essa viagem seja feita ao lado de Lyonne, uma das melhores companhias que alguém poderia ter em sete episódios de televisão. A persona da atriz já é icônica, com seus cabelos ruivos volumosos, sua linguagem corporal nervosa e sua voz rouca que dispara piadas absurdas em espesso sotaque nova-iorquino. Aqui ela prova mais uma vez que existe uma alma por trás desse ato, colorindo sua Nadia com requintes de afeição, exaspero e maturidade, conforme a situação exige, e encarnando em olhares de soslaio e sorrisos delicados a riqueza emocional de uma mulher em pleno processo de reconciliação consigo mesma.
E este é, de fato, o show de Lyonne. A segunda temporada de Boneca Russa não negligencia seus coadjuvantes, exatamente - pelo contrário, até se preocupa em dar a eles arcos completos e algum peso emocional (principalmente no caso de Alan, já que Barnett segue sendo brutalmente eficiente no papel). Mas há sim um senso palpável da dominação criativa exercida pela estrela, roteirista e diretora, uma ânsia óbvia de colocar essa história para fora não só como exorcismo psicológico, mas também como pontificação artística. Ela está nos dizendo o que aprendeu, e nos implorando para escutá-la.
Para tornar o apelo mais atraente, a Boneca Russa de Lyonne conta com ao menos três ases na manga: um design de produção luxuoso (de Diane Lederman), que reconstrói várias épocas diferentes com granularidade impressionante; um episódio final tão caótico quanto profundamente afetuoso; e nenhum medo de perder a simpatia do espectador por causa de suas loucuras metafísicas (a mentalidade parece ser que, se você chegou até aqui, não vai pular do barco agora). Poucas séries de TV no cenário atual são mais corajosamente pessoais, mais unicamente profundas, ou mais completamente irresistíveis que esta.
Criado por: Leslye Headland, Natasha Lyonne, Amy Poehler
Duração: 2 temporadas