Neste momento, os olhos do mundo estão voltados para o Qatar. Como você sabe, o país do Oriente Médio recebe a Copa do Mundo masculina de futebol. Porém, há um lado sujo do torneio que não vemos nas brilhantes transmissões da TV - mas que você pode encontrar na Netflix, na minissérie Esquemas da FIFA.
Lançada agora no começo de novembro, a produção norte-americana dirigida por Daniel Gordon mergulha no lado controverso da maior entidade do futebol (e, por consequência, do esporte) mundial. E essas águas são bastante turvas e sujas.
Dividida em quatro episódios, a produção passa rapidamente pela origem (um pouco romantizada) da FIFA, chegando ao primeiro acontecimento que a mudaria para sempre: a eleição do brasileiro João Havelange para a presidência da entidade. Junto dele viria também outro nome famoso do noticiário esportivo (e, mais recentemente, do policial): o então secretário-geral Joseph Blatter.
De um torneio relativamente pequeno, com 16 seleções, a Copa do Mundo - a joia da coroa da FIFA - se tornou aos poucos esse fenômeno mundial no sentido financeiro, girando muito dinheiro. E onde há dinheiro há poder. A cada acontecimento vai surgindo um animal enorme, feio e assustador, que se alimenta da ganância e topa se sentar ao lado de ditadores.
Para pintar essa trajetória, Esquemas da FIFA não só apresenta um grande trabalho de pesquisa, com ótimas imagens de arquivo, mas também um acesso aos principais atores dessa história. Estão entre os entrevistados o próprio Sepp Blatter (que se tornaria o presidente da entidade), Jérôme Valcke (ex-secretário geral), Ricardo Teixeira (ex-presidente da nossa CBF), Hassan Al-Thawadi (do comitê de organização da Copa de 2022) e Mohammed Bin Hammam (ex-candidato à presidência da FIFA) - todos acusados e investigados pela corrupção na FIFA. Na mesma medida, a produção ouve jornalistas, acusadores e investigadores.
Dessa forma, não temos aquele documentário chato, com uma narração que explica e contextualiza cada fato. Não há um locutor: são as entrevistas que colam todos os acontecimentos, em um formato mais fluído e que, de certa forma, escuta diversos lados nessa história. Agora, não se engane: a imparcialidade é um mito e Esquemas da FIFA tem, sim, um ar de denúncia e reprovação, inclusive com questões bastante incisivas feitas aos entrevistados. Há, no entanto, a chance de entender que as figuras que vemos ali são tridimensionais.
Afinal, a força da FIFA cresceu para além do esporte, se tornando um verdadeiro jogo de poder que envolvia (e, provavelmente, ainda envolve) trocas de favores e distribuição de recursos parrudos. Até acordos entre governos, com interesse entre grandes empresas (incluindo estatais), entraram na balança.
Até que ponto esse lobby é válido, para o bem de nações e povos, e quando se transforma algo errado? E, quando se torna reprovável, há um limite dentro das atitudes escusas? Levar a Copa do Mundo para o continente africano é algo nobre, mas comprar votos para a África do Sul durante o processo de seleção do país-sede é melhor ou igual a compactuar com a Rússia de Vladimir Putin e com a ditadura no Qatar? Acima de tudo isso, as críticas ao país-sede do torneio deste ano tinham todas motivações verdadeiras, ou eram também movidas pelo preconceito ocidental?
Em seu formato, Esquemas da FIFA não traz respostas claras para essas questões, mas a minissérie é minuciosa ao recortar falas, sejam de arquivo ou de novas entrevistas, que dão um tom de máfia para a alta cúpula da entidade. Caso alguém fizesse um teste de "quem disse isso?" entre Blatter e Don Corleone, incluindo apenas as declarações com a palavra "família", você certamente erraria a metade.
A partir do final do terceiro episódio, a minissérie muda um pouco de tom. Se torna quase um procedural, acompanhando os detalhes da grande investigação do FBI que, em 2015, prendeu muitos dos envolvidos nos esquemas. Tem mais: a produção mergulha na organização da Copa do Qatar, incluindo nas mortes de imigrantes que ocorreram durante as obras de construção de estádios e da infra-estrutura.
Decisões tomadas considerando desejos individuais, afinal, costumam muitas vezes irem totalmente contra as necessidades coletivas. Tudo isso enquanto Blatter alimentava o delírio de, em um ambiente extremamente corrupto, conquistar a paz mundial.
Ainda assim, apesar do título em português, a minissérie da Netflix deixa de lado muitos dos esquemas da FIFA. Sabemos, por exemplo, que havia uma sistemática compra de votos das federações nacionais nas escolhas das sedes das Copas e dos presidentes da entidade, tudo sob o pretexto de fomentar o futebol nessas nações. De passagem, somos informados que muitas dessas obras nunca saíram do papel, mas a série não se aprofunda no funcionamento das estruturas locais de corrupção, por exemplo.
Outro ponto apenas tangenciado pela minissérie envolve os direitos de transmissão, principalmente a partir de meados dos anos 2000. É o dinheiro da TV (e, agora, do streaming) que movimenta muito dos subornos - incluindo aí uma estratosférica inflação nas últimas décadas.
Tem mais: a Copa do Mundo de 2014, no Brasil, é simplesmente pulada nas denúncias sobre as últimas edições do torneio. Tivemos, ao menos junto à federação, um processo limpo e transparente? Fica a dúvida.
Independentemente da escolha do que entrou e do que ficou de fora na história relatada, Esquemas da FIFA tem diversos méritos técnicos e de jornalismo - sem cair na tentação de espetacularizar ou dramatizar eventos. Ela, no entanto, deve servir apenas como ponta do iceberg, abrindo os olhos do público para que todos entendam, de uma vez por todas, que futebol, dinheiro, poder e política se misturam, sim. O esporte é apenas um reflexo de quem somos: seres imperfeitos e corruptíveis.
Não é apenas futebol, no pior sentido possível dessa expressão.
Esquemas da FIFA
Encerrada (2022-2022)
Criado por: John Battsek, Daniel Gordon
Duração: 1 temporada