João Teixeira de Faria, o João de Deus, fez fama no Brasil e no mundo por, supostamente, ajudar a curar doenças impossíveis e performar milagres naqueles que vinham a seu auxílio na pequena cidade de Abadiânia, em Goiás. Ele caiu nas graças de celebridades como Xuxa e Oprah Winfrey e atraiu fiéis de vários continentes. Em 2018, no entanto, centenas de mulheres o denunciaram por abusos sexuais -- um escândalo que é, agora, retratado pela Netflix no documentário João de Deus: Cura e Crime.
Em quatro episódios, a produção dirigida por Mauricio Dias e Tatiana Vilela se propõe a, principalmente, dar voz a sobreviventes dos abusos perpetrados pelo médium, incluindo sua filha, Dalva Teixeira de Sousa. Ela faz isso de forma sóbria e respeitosa, dando espaço para que essas mulheres falem não só do abuso em si, mas também dos impactos dele em suas vidas, trazendo à luz um tópico necessário que, apesar de todos os avanços após discussões públicas como a do #MeToo, ainda é tratado como tabu.
Às falas dessas mulheres, somam-se não só declarações de autoridades como promotores e policiais, mas também de outros ex-funcionários da Casa Dom Inácio, local onde João fazia seus atendimentos -- e onde também ficava a sala na qual, segundo os depoimentos, aconteceram os abusos. Esses entrevistados ajudam a descortinar ainda mais esse outro lado de João de Deus, com relatos que envolvem uso de armas, intimidação e a extorsão de comerciantes e empresários de Abadiânia.
É uma mistura que provoca, inevitavelmente, uma sensação de horror seguida por um questionamento: como, afinal, pode um homem ter cometido tantos crimes e passado incólume por tanto tempo? Cura e Crime passa por algumas das possíveis respostas, incluindo as vistas grossas por parte dos funcionários da Casa e o medo causado pelas associações políticas poderosas do médium. Mas a série coloca, também, a inescapável (e complicada) questão da fé, evidenciando o quanto a crença alheia pode ser manipulada por alguém em proveito próprio.
Abrindo espaço para mostrar uma outra perspectiva -- mas sem lançar dúvidas sobre os relatos das sobreviventes --, Cura e Crime também adentra na Casa Dom Inácio para conversar com voluntários, que trazem relatos interessantes sobre os dias que antecederam a prisão de João Teixeira. Para o final, a série guarda uma breve participação do próprio médium, então cumprindo prisão domiciliar após algumas idas e vindas da Justiça. Em uma grande coincidência, ele voltou ao presídio um dia após o lançamento da produção, por ordem da Justiça.
É preciso notar que João de Deus: Cura e Crime não se aprofunda no histórico do médium ou em seus crimes que fogem da esfera do abuso, principalmente quando posto em comparação com Em Nome de Deus, série lançada em 2020 pelo Globoplay que fez um extenso (e impressionante) trabalho jornalístico sobre o médium. Mas, na história dolorosa que se propõe a contar, a produção da Netflix consegue se sair bem, entregando um trabalho ao mesmo tempo sensível e impactante.
Criado por: Mauricio Dias e Tatiana Vilela
Duração: 1 temporada