Poucos autores tiveram uma explosão de reconhecimento e popularidade nos últimos tempos quanto H.P. Lovecraft. Conhecido como um dos maiores nomes do chamado horror cósmico, o escritor criou inúmeros contos sobre entidades ancestrais e terrores inomináveis. A influência dessas histórias permeia toda a cultura pop, mas poucas obras absorveram seus escritos como Lovecraft Country. A nova série da HBO incorporou não apenas o lado sobrenatural, como também a enorme veia racista do escritor em uma trama poderosa que usa o horror como entretenimento e denúncia.
Antes de mais nada, é importante tirar o Cthulhu da sala e dizer que Lovecraft Country não é uma adaptação das histórias de H.P. Lovecraft. A série funciona mais como uma espécie de antologia continuada, com episódios quase fechados que abordam diferentes tipos de horror. Baseada no livro Território Lovecraft, de Matt Ruff, a produção conta a história de Atticus Turner (Jonathan Majors), um veterano da Guerra da Coreia que volta para casa quando descobre o desaparecimento de seu pai, Montrose (Michael K. Williams). A partir daí, sua família e amigos entram em uma espiral de horror que envolve monstros nascidos do contato com o oculto, e da intolerância.
Por causa de seu formato semi-antológico, Lovecraft Country promoveu uma experiência única a cada semana. A série passeou por subgêneros do horror e ficção científica, indo da casa mal-assombrada ao body horror, sem esquecer de aventuras em mundos alienígenas que deixariam qualquer Flash Gordon orgulhoso. Essa diversidade de estilos e abordagens permitiu à produção contar uma história através de diferentes pontos de vista. A chegada de Atticus serve como ponto de partida para um enredo maior que conecta tragédias reais como o Massacre de Tulsa e a Guerra da Coreia à legislação racista dos Estados Unidos, sem tirar o pé da literatura pulp de maneira orgânica.
Essa variedade de estilos e eventos históricos é uma viagem ao passado que ora soa como homenagem, ora como denúncia. Alguns de seus melhores episódios, inclusive, são aqueles que fazem os dois ao mesmo tempo. A jornada de Hippolyta (Aunjanue Ellis) para descobrir quem realmente é ou o acerto de contas de Montrose com o passado ultrapassam a barreira de entretenimento e tocam em feridas sociais que infelizmente ainda se fazem presentes na sociedade em 2020.
Não é gratuita a forma como o racismo - sistêmico e individual - é incorporado à trama. O fator social sempre esteve próximo do horror, o que torna especialmente assustador levar em conta que alguns dos momentos mais tensos da série são inspirados em eventos do mundo real. E é aí que a produção cria a ponte entre o horror de H.P. Lovecraft e aquele encontrado no mundo real. Se nos contos do autor os protagonistas são oprimidos por forças inomináveis a ponto de constantemente ter suas mentes despedaçadas, na série Atticus e companhia têm suas vidas ameaçadas por monstros que perante a lei podem matá-los por simplesmente estar no lugar errado.
Por outro lado é injusto com a série reduzir sua importância social à denúncia. Ainda que esse lado seja relevante à luz de todo um sistema que oprime a população negra, Lovecraft Country também promove um aprofundamento apaixonado na cultura afro-americana. A recriação de fotografias de Gordon Parks, a inclusão de figuras históricas como Jerry Robinson e até a trilha sonora que inclui precursores como Etta James e Fats Domino a fenômenos atuais como Rihanna e Cardi B adicionam uma camada de celebração mais do que bem-vinda.
Uma das escolhas mais divisivas da série foi definir um protagonista para cada episódio. Ainda que parte do público tenha apontado que múltiplos focos causam desorientação na trama principal, o resultado é, na verdade, muito satisfatório por dar espaço para que seu elenco inspirado se sobressaia. A maior prova disso foi que a frase “o Atticus não é protagonista” ganhou força semana após semana, e muito se deve à entrega de Jurnee Smollett-Bell (Letitia), Wunmi Mosaku (Ruby), Jada Harris (Diana), além dos já citados Michael K. Williams e Aunjanue Ellis. Vale dizer que a Ji-Ah, de Jamie Chung, só não figura nessa lista de “possíveis protagonistas” por conta de seu pouco tempo em tela, já que carregou com maestria um dos melhores episódios da temporada.
Outro acerto em abordar os múltiplos gêneros foi a possibilidade de visitar diferentes mundos que funcionam de forma coesa para a mitologia criada neste universo. A parte técnica da série, que além da criadora Misha Green ainda conta com nomes de peso como J. J. Abrams e Jordan Peele na produção, é impecável ao dar unidade aos mais diversos lugares pelos quais a série passa. Desde a Coreia do Sul castigada pela guerra, passando por mundos saídos diretamente da imaginação, a equipe técnica fez bonito ao criar um universo vivo que une cenários autênticos com efeitos visuais de qualidade.
O grande problema encontrado neste formato é que muitas vezes os personagens precisam tomar atitudes quase injustificáveis para fazer a trama andar. Com muita história para contar em 10 episódios, o roteiro força a mão em decisões questionáveis que por pouco não ofuscam a construção de personagens tão interessantes. Esse lado negativo só não toma conta porque o time de roteiristas liderado por Misha Green recalcula algumas rotas a tempo e garante um desfecho satisfatório.
Ao fim de sua primeira, e talvez única, temporada, o resultado é impactante e certamente entra para o rol de grandes produções televisivas dos últimos tempos. Como uma experiência atípica o suficiente para desestabilizar as expectativas do espectador - e com grande poder para modificar a visão de quem assiste - , a série enfim encontra semelhanças com a obra de H.P. Lovecraft, que também criou regras e um léxico próprio nos seus contos de horror. Porém, se os desfechos dos chamados Mitos de Cthulhu fazem com que seus protagonistas enlouqueçam para sempre, o que fica de Lovecraft Country é o contrário, e vistos em conjunto os episódios podem até formar uma unidade iluminadora, reveladora.
Criado por: Misha Green
Duração: 1 temporada