Clássico absoluto de Neil Gaiman, Sandman passou por inúmeras tentativas de adaptação em live-action ao longo dos anos. Extremamente protetor em relação à trama que criou para a Vertigo, antigo selo adulto da DC Comics, o autor passou décadas dispensando e sendo dispensado por estúdios e produtores interessados na história de Morpheus e seus irmãos Perpétuos. Mas, 34 anos depois do lançamento da primeira edição da HQ, a primeira adaptação televisiva oficial chega à Netflix e, embora não provoque o mesmo impacto que o quadrinho, mostra que a espera de Gaiman e dos fãs não foi à toa.
De forma geral, a série de Sandman segue a mesma trama que os quadrinhos: Sonho dos Perpétuos (Tom Sturridge) é capturado num ritual de magia das trevas por Roderick Burgess (Charles Dance), que o aprisiona por mais de um século. Quando escapa, o Rei dos Sonhos parte em uma jornada para recuperar seu poder e seu reino. Mesmo com uma narrativa bem próxima do que nos foi apresentada há mais de trinta anos, a nova adaptação conta com mudanças pequenas, mas pertinentes, que dão um ar de novidade e que permitem que a história se traduza com naturalidade para a TV.
Coordenadas pelo próprio Gaiman, que comandou a série ao lado de David S. Goyer (Batman Despertar) e Allan Heinberg (Mulher-Maravilha), essas mudanças não alteram em quase nada a história de Sandman, limitando-se a dar uma personalidade mais marcante a alguns dos personagens que cercam Sonho. Com isso, Coríntio (Boyd Holbrook) e Desejo (Mason Alexander Park), por exemplo, assumem um papel antagônico mais explícito que nos gibis, enquanto Matthew (Patton Oswalt) e Lucienne (Vivienne Acheampong) têm mais espaço para manter Morpheus “na linha”.
O maior mérito da produção da Netflix é ter Gaiman entre seus principais arquitetos. O criador de Sandman usa sua liberdade criativa para atualizar personagens, cenas e situações icônicas sem deixar que a essência da história original se perca em meio a essas adaptações. O bom olho do autor para mudanças pode ser comprovado em “24/7”, capítulo que recria a emblemática história em que John Dee usa o Rubi de Sonho para torturar os fregueses de uma pequena lanchonete de beira de estrada. Mesmo que se desenvolva de forma diferente do que a das páginas, a narrativa surge tão angustiante quanto em sua versão original, apoiada na atuação arrepiante de David Thewlis.
É bom dizer, aliás, que as atuações de Sandman são algumas das melhores que já agraciaram as produções originais da Netflix nos últimos anos. Boyd Holbrook, por exemplo, aparece simplesmente aterrorizante como o Coríntio e não seria exagero considerá-lo para um Emmy em 2023. Apesar de não aparecer tanto quanto seus colegas de elenco, Kirby Howell-Baptiste também faz um trabalho tocante como a Morte. Doce, a atriz entrega uma Perpétua forte, porém compreensiva, e que nunca esconde seu fascínio pelo amor dos humanos pela vida. Na mesma linha, Gwendoline Christie, Vanesu Samunyai, Ferdinand Kingsley e Jenna Coleman fazem de Lúcifer, Rose Walker, Hob Gadling e Johanna Constantine, respectivamente, seus próprios personagens, dando uma cara nova a cada um deles sem nunca perder o que foi visto no Sandman original de vista.
O reino dos sonhos também tem seus pesadelos
Por melhores que sejam as atuações e adaptações à tela, Sandman infelizmente sofre com um claro problema de ritmo. Inconstante, a série se dá ao luxo de passar dois ou três episódios construindo expectativas para conclusões emocionantes que, embora estejam lá, aparecem de forma relativamente apressada. Ao contrário do quadrinho original, a produção não dá tempo para que o espectador reflita sobre o significado da história que acabou de consumir, fazendo com que o final de cada arco deixe uma incômoda sensação de vazio que se acumula a cada episódio.
Mesmo que seja essencialmente um problema de roteiro e direção, a inconsistência rítmica de Sandman se deve também à forma como a Netflix promove seus lançamentos. Ao liberar toda a temporada de uma vez só, a plataforma sugere uma maratona que, embora pareça divertida no papel, é exaustiva na prática. Obviamente, lançar os episódios semanalmente não resolveria o problema, mas talvez tornasse a experiência de assistir - e digerir - a série menos desgastante.
Outro ponto questionável da produção é a qualidade de seus efeitos visuais. Por mais que tenha um orçamento generoso para uma série (cerca de US$165 milhões), o CGI de Sandman é tão irregular quanto seu ritmo, alternando entre criaturas fantásticas belíssimas com cenários digitais claramente artificiais e que testam a imersão do público como poucas produções de custo tão alto. A precariedade dos efeitos faz com que seja impossível sentir o choque entre sonhos e realidade, algo tão essencial para Sandman quanto o próprio Morpheus, levando a uma experiência incompleta da história de Gaiman.
Apesar de um ou outro tropeço em sua execução, a primeira temporada de Sandman na Netflix consegue corresponder a boa parte das expectativas que a cercavam. Menos reflexiva que o quadrinho de Gaiman, a série ainda assim entrega momentos intrigantes e emocionantes, muito graças ao trabalho louvável de um elenco perfeitamente selecionado. Ainda que não repita a incomparável genialidade da HQ de 1988, o seriado é, pelo menos, uma ótima porta de entrada para curiosos e pode atrair toda uma nova geração de fãs que ainda não havia tido contato com as histórias de Sonho e seus irmãos Perpétuos.
Criado por: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg
Duração: 1 temporada