“Eu não sou piedosa. Não sobrou nenhuma piedade em mim”, declara a protagonista Liz Danvers em certo ponto do finale de True Detective: Terra Noturna. Como enunciadas por Jodie Foster, de forma truncada e brusca, quase incompleta, seguidas imediatamente de uma saída de cena raivosa, essas duas sentenças soam como uma admissão emocional muito mais potente do que as longas divagações filosóficas empreendidas pelos personagens criados por Nic Pizzolatto em temporadas anteriores da antologia da HBO. Havia algo eletrizante em acompanhar Matthew McConaughey desandando a falar sobre “o tempo ser um círculo plano”, é claro, mas a Danvers de Foster e da roteirista/diretora Issa López é uma personagem muito melhor do que Rust Cohle jamais poderia ser.
Isso porque López está muito mais interessada em fazê-la uma boa personagem, humana e autônoma, do que Pizzolatto se interessou por qualquer uma de suas criações, a começar pela literalidade e o distanciamento do cinismo de Cohle. E não é só que o texto dela salpica de detalhes reveladores a vida de Danvers e cia. na cidadezinha de Ennis, no ponto mais ao norte do Alaska, em um trabalho de pesquisa obviamente hercúleo que faz maravilhas pelo apelo genuíno da ambientação da temporada. Para muito além disso, López é uma roteirista que trabalha com mais habilidade o não-dito e o não-revelado para construir personagens que - como qualquer um de nós - mantêm partes de si guardadas até de si mesmos.
De certa forma, o processo de toda história é colocar seus personagens em contato com essas partes secretas de si, e esta temporada faz brilhantemente o trabalho de estabelecer, justificar e eventualmente revelar a extensão e consequência desses segredos. É, enfim, uma narrativa de mistério muito melhor do que as de Pizzolatto, consumidas com um desejo genuíno e (na dose certa, com a direção certa) envolvente de explicar e explicar, discursar e discursar sobre os cantos mais soturnos da humanidade, seja em seus atos ou pensamentos. É um impulso verborrágico que tende a encantar os ouvidos bem treinados para identificar a arte das palavras (e Pizzolatto sabe escrever bons diálogos quando quer) - mas eloquência e prolixidade não são a mesma coisa.
Não é à toa que López batizou sua obra de Terra Noturna, afinal. Escondidas pela enormidade dos nossos dispositivos de defesa, pelos próprios mecanismos que usamos para conseguir seguir em frente como pessoas, as sombras do ser humano são muito mais integrais em tela, muito mais sentidas, e muito mais aterrorizantes. E vale notar que, enquanto divide o texto com uma mão cheia de outros roteiristas (incluindo Chris Mundy, criador de Ozark), López não sai da cadeira de diretora para nenhum dos seis episódios da temporada, mantendo rédea curta na exploração visceral de horror que sua trama exige.
O resultado é que, mesmo quando trafega em chavões fáceis do gênero, Terra Noturna o faz no contexto do aprofundamento de suas ambições narrativas. Por exemplo: há mais de uma aparição fantasmagórica vinda de surpresa, apontando o dedo na direção da câmera, enquanto um guincho ensurdecedor explode ao fundo, mas López e sua equipe usam o choque fácil para gravar esses momentos na memória do espectador, a fim de que ele junte pontos importantes para a jornada de uma personagem em específico depois. Para Terra Noturna, assombrações e aparições são instrumentos para adicionar camadas de significado à trama - que é exatamente o que histórias de fantasma fazem na vida real, não?
Outra consequência dessa abordagem é que o elenco de Terra Noturna cria laços muito mais dinâmicos entre seus personagens do que os atores que passaram anteriormente por True Detective. É claro que Foster é o elo mais forte da corrente, entregando mais uma grande performance temperada por narrativa pessoal, que passa os primeiros episódios amontoando idiossincrasias para depois transbordá-las diante das quebras de normalidade dos eventos finais da temporada. Mas o coração da série está na troca entre ela e Kali Reis, excepcional em sua fúria mal sufocada; entre ela e Finn Bennett, que se mostra capaz de elaborar conflitos absurdamente complexos com integridade; entre ela e Isabella Star LaBlanc, dolorosamente dividida entre afeto e desencontro.
Essas e outras dinâmicas (não há um personagem que passe pela caneta de López sem estabelecer alguma conexão profundamente humana com outrem) dão a Terra Noturna uma qualidade corrente que True Detective nunca teve. Sob o olhar fatalista e operático de Pizzolatto, a série sempre pareceu estar esbravejando contra verdades imutáveis, conceitos abstratos de humanidade que sempre estiveram ali e sempre estarão. “O tempo é um círculo plano”, “o monstro no fim do sonho”, etc e tal, preocupações oníricas e elevadas que removiam a agência humana diante dos horrores que enfrentava. A esperança existia somente como uma concessão necessária à fantasia, sem a qual seria insuportável continuar vivendo.
Terra Noturna, enquanto isso, pula sem medo no campo sujo do que podemos fazer para mudar um pedacinho desse mundo cínico que o cinismo dos outros criou, e é muito mais assertiva na hora de nomear esses outros, aliás. Os monstros no fim dos sonhos de López, assim como seus lacaios, têm nomes… ou, pelo menos, um CNPJ. E acima - ou, talvez, por causa - de tudo isso, esta é uma história sobre pessoas a quem não sobrou nenhuma piedade, redescobrindo onde podem encontrá-la: uns nos outros, é claro.
Criado por: Nic Pizzolatto, Issa López
Duração: 4 temporadas