"Esse é o mangá mais chocante que eu já vi e quero adaptar da maneira mais fiel possível". As palavras do diretor Masaaki Yuasa soam pretensiosas, mas ao vivo são de uma humildade quase palpável. Calmo e de fala lenta, o artista é o responsável pelo anime Devilman Crybaby, mais nova produção original da Netflix. No meio dessa serenidade, porém, está escondida uma sede pela vanguarda, pelo chocante, que ficou comprovada enquanto o Omelete visitou Tóquio e o estúdio de animação criado por Masaaki, o Science SARU.
Escondida em um bairro tranquilo e afastado do centro da capital japonesa, a sede da empresa fica em uma modesta casa de dois andares que abriga uma equipe de pouco mais de 10 pessoas. No dia da visita, todos trabalhavam em silêncio, descalços e concentrados em Devilman, até ali, o projeto mais ambicioso do estúdio - não só pelo tamanho e envolvimento da Netflix, mas pela história em si. "Essa iniciativa é complicada e difícil pois Devilman é muito único. Existe muito sexo e violência no mangá e o final dele é impactante, difícil de digerir. É muito difícil adaptar tudo em um arco só e mais ainda em uma série de 10 episódios", diz Masaaki.
Masaaki Yuasa, diretor de Devilman Crybaby
O enredo do mangá se resume a um homem que combina o próprio corpo com um demônio, após saber que a humanidade está prestes a ser dizimada por estas criaturas. A partir dali, ele se transforma em uma criatura de coração e pensamentos humanos, mas com impulsos, poderes e um corpo demoníaco: o Devilman. Para transmitir essa mudança com todo a grandeza que merece, Masaaki se inspirou no grafismo e no retrato que o mangá faz dos humanos.
"Não quero que a história seja preto no branco, mal contra o bem. O mangá não é assim e o anime não será também. Queremos trabalhar no meio-termo, mostrar realmente uma criatura demoníaca com coração humano (...) Sorte a nossa que a história reflete muito a nossa sociedade. Teremos que fazer algumas adaptações, afinal o mangá foi escrito há 45 anos, mas a essência ainda está ali", contou o diretor. "E acho que esse contexto reflete nossa sociedade. Hoje tudo é muito sobre tomar partido e não fazer esforço para entender o outro. E ainda que exista muita violência e sexo no anime, o entendimento do está dentro dos personagens. Isso é o que é mais importante", disse.
A crítica à sociedade, aos humanos e a figura malévola que é o Devilman sempre afastaram os estúdios japoneses de uma adaptação. Masaaki, por outro lado, acredita que esse é o fator mais forte da história. "A crítica aos seres humanos e o que mais me chama atenção no mangá original. Pois mesmo com tudo isso, toda a violência,há uma redenção no final. Eu pretendo mostrar essas duas coisas na animação; acho que existia também alguma doçura nisso tudo também", contou o artista, que se dizia feliz com a liberdade criativa dada pela Netflix. "Eles nos deixaram fazer tudo da nossa forma. Queremos uma série que seja aceita no Japão, mas que também seja apreciada pelo mundo todo. Acredito que se vc tem uma visão além do alcance, ela será bem recebida em qualquer lugar", disse.
Devilman é a tradição unida à modernidade
Para que essa aceitação seja mundial, Masaaki e sua equipe fizeram alguma mudanças no visual de Devilman. Os protagonistas ganharam novos traços, algumas alterações de nome e índole e algumas trajetórias foram refeitas para modernizar a história. A troca mais impactante é o estilo de animação, que mistura desenhos feitos à mão com efeitos em Flash. "Tudo em Devilman é sobre agilidade e rapidez. Faremos a maioria do projeto em animação, mas misturamos muito do Flash - assim como fizemos em Lu Over The Wall", revelou o diretor, se referindo ao trabalho mais renomado do estúdio e vencedor do Annecy, um dos maiores prêmios de animação do mundo.
"Existe muito espetáculo e muitas cenas grandiosas em Devilman e gostaria de mostrar como o nosso estilo de animação (desenho e 2D) contribui para isso. No fim das contas, acho que fizemos algo muito parecido com o que há no mangá", opinou Masaaki. A mistura entre moderno e tradicional fica evidente no momento em que as primeiras imagens de Devilman surgem na tela. Traços jogados, ágeis e o alto contraste causam estranheza de início, mas no fim das contas formam um estilo hipnotizante. Para o artista, o processo de criação deste traço é algo natural, resultado da união de todas as influências que pegou ao longo dos anos.
Essa mistura, que para muitos soa como vanguardista, causou problemas para Masaaki. Enquanto a crítica internacional o vê como um dos maiores nomes da animação moderna, muita gente no Japão relega o seu trabalho a algo estritamente comercial e não artístico. "É engraçado, ouço muito isso desde sempre. A parte artística da indústria acha que eu sou comercial demais, enquanto a parte comercial acha que eu sou artista demais. Acho que não há um lugar para mim", desabafou o diretor, que não nega a influência ocidental no jeito de produzir, trabalhar e contar histórias.
"Não quero me afastar das minhas origens. Sou cria da indústria japonesa de animação, mas também de nomes como Miyazaki, Hitchcock, Spielberg, De Palma e de tudo que é nerd e geek", cita. "Toda essa mistura é algo que eu não acho que fica tão evidente para a audiência. Não acho que faz diferença. No fundo, eu só quero mesmo fazer um bom trabalho e contar uma boa história", disse.
Devilman Crybaby tem 10 episódios, foi produzida pelo Science SARU em parceira com a Aniplex, e está já está disponível na Netflix. Devilman é uma produção original da Netflix que faz parte da nova empreitada da empresa no Japão - saiba mais sobre isso aqui.