Quando se trata do discurso em torno do gênero conhecido como true crime (nome dado a narrativas que exploram crimes reais, seja com reencenações ou uma abordagem mais jornalística), muito se discute o valor dessas histórias nos termos de como a obsessão em torno delas pode ajudar na mitologização de figuras reais violentas, suportando um culto de personalidade que já existe e desumanizando as vítimas - ou, no máximo, capitalizando de forma trivial em cima do seu sofrimento. É uma conversa complexa e corrente, da qual a nova série Happy Face: Um Serial Killer, do Paramount+, sabe muito bem que não pode fugir. Até por isso, ela resolve fazer dessa conversa o centro de sua narrativa.
Não é uma manobra muito difícil. Happy Face, afinal, é inspirada na experiência de Melissa Moore (aqui vivida por Annaleigh Ashford, fresca de sua indicação ao Emmy por Bem-Vindos ao Clube da Sedução), filha de Keith Jesperson (Dennis Quaid), conhecido como o Assassino Happy Face, apelido que ganhou por desenhar rostos felizes nos cenários de seus crimes. A série começa com Melissa afastada do pai, que foi preso quando ela tinha 15 anos, há muito tempo - e isso só muda quando ele descobre que ela trabalha como maquiadora em um programa de TV sensacionalista, utilizando essa conexão para prometer uma confissão bombástica e, assim, obrigá-la a visitá-lo novamente.
Ao colocar Melissa como protagonista da história, Happy Face encontra, em uma tacada só, originalidade dentro do true crime e uma boa maneira de contornar as discussões morais que cercam o gênero. No texto da showrunner Jennifer Cacicio (Atirador, Your Honor), a experiência das vítimas não é trivial e nem secundária - ela é todo o ponto de estarmos ouvindo essa história, e inclusive se estende para caminhos inesperados. Happy Face é sobre como assassinos monstruosos fazem daqueles que os cercam um pouco monstros também (cúmplices mesmo que não sejam cúmplices), sobre como essa marca da maldade se transforma em culpa, a culpa se transforma em mentira, e a mentira se transforma em desconfiança.
Daí a potência das cenas que se concentram na vida familiar de Melissa, com um marido (o sempre ótimo James Wolk) e uma filha adolescente (Khiyla Aynne) que adotam posturas opostas quanto à sua decisão de falar publicamente sobre os crimes do pai. Daí a ambivalência precisa que a série emprega no seu retrato da comunidade que se desenvolveu em torno do true crime, seja em talk-shows sensacionalistas ou em museus e podcasts dedicados a assassinos em série. Happy Face entende a necessidade de catarse e o apelo do espetáculo grotesco dessas histórias, e entende até que é um pouco culpada de servir a esses mesmos impulsos. Mas ela não os julga nem os satisfaz, só busca entender os caminhos complicados do trauma que leva a eles.
Fosse só isso, a série de Cacicio poderia ser um triunfo - até porque tem um diretor que olha argutamente para os vícios e glórias do modo de vida estadunidense (Michael Showalter, que também fez ótimos trabalhos em The Dropout e Os Olhos de Tammy Faye, assina o piloto) e uma protagonista infinitamente assistível, que merece os holofotes de um papel principal na TV. Acontece que Happy Face quer estofar sua narrativa um pouco mais, talvez sentindo a necessidade de preencher os excessivos oito episódios de quase 1h para além do drama familiar. O que a produção escolhe fazer, então, é usar a história real de Moore como trampolim para uma trama de investigação inteiramente ficcional, e também inteiramente sem inspiração.
Essa subtrama, que coloca a série num pique de procedural (pense em Law & Order, mas sem os mais de 30 anos de estabelecimento de marca, e sem a agilidade de abrir e fechar casos num único episódio), não se encaixa nada bem com o tom que ela abraça em outros cantos da história. Não demora para o espectador entender quais partes daquela jornada são manufaturadas, e quais vêm de algum tipo de verdade emocional, de alguma vontade de dizer coisas novas sobre o nicho em que se encontra. Algumas cenas voam, outras se arrastam; e, nesse cabo de guerra, a série se mostra muito mais meia-boca do que o talento de qualquer um dos envolvidos, ou a seriedade do tema, pareciam exigir.