Tem um Corra! inteiro dentro do segundo episódio de Lovecraft Country. Em versão compacta, ao longo de 58 minutos, a narrativa se desdobra como o filme de Jordan Peele - começando pela paranoia até chegar no racismo sistêmico - para definir a inversão de papéis que a série da HBO propõe a partir do universo de horror de H.P. Lovecraft.
À procura de Montrose no coração do "território Lovecraft", Tic, seu tio e Letitia chegam à mansão onde são recebidos como príncipes pela família Braithwhite, com sua brancura cartunesca de vampiros albinos. Lá, os protagonistas aprendem que Lovecraft Country não apenas bebe na fonte do horror B como é uma série de fantasia literalmente, com feitiços, redomas invisíveis e eugenismo maldito.
Basicamente sai a hipnose de Corra! e entra a magia negra; a sociedade secreta, os afetos interesseiros, a "casa grande" de campo, a escravidão revisitada sob viés sexual, tudo no episódio recontextualiza a obra de Peele para um universo que está mais próximo de Além da Imaginação do que do chamado "horror elevado". Se isso já estava claro no episódio de estreia, agora não há mais dúvidas: quando Abbey Lee faz o parto da vaca e traz à luz um monstrenguinho não há nada de "arte elevada" nisso, e os fãs do horror raiz agradecem.
Essa aderência ao discurso francamente político - em que os negros redespertam para a consciência de serem instrumentalizados na sociedade americana - é a forma que o seriado encontra de inverter as lógicas do racismo de Lovecraft. Nos contos que formam os chamados Mitos de Cthulhu, Lovecraft sempre colocava os negros, mestiços e asiáticos - enfim, os "diferentes" - como os pivôs e peões do satanismo. O que "aprendemos" em Lovecraft é que o misticismo é coisa de gente sem cultura, sem educação, de imigrantes e do proletariado. Logo se vê que em Lovecraft Country é o oposto: a magia negra é privilégio e hobby dos belos e ricos, cuja intenção não seria outra senão se perpetuar na juventude e na bonança.
Conto escrito em 1933, "A Coisa na Soleira da Porta" talvez seja o único dos grandes escritos do autor em que os vilões são uma família bem estabelecida de estudiosos de magia negra, que passam o mal de forma hereditária. Asenath, uma jovem "morena, pequena e muito bonita", nas palavras de Lovecraft, poderia bem ser uma das bases para a criação de Christina em Lovecraft Country, mas as diferenças são muitas e mais fortes: uma delas é que o satanismo é substituído pela leitura fundamentalista e literal dos mitos do cristianismo. Saem Cthulhu (por enquanto?) e os demônios antigos e entra Adão como totem de uma suposta pureza racial anterior ao pecado original.
No começo do episódio, Tic era colocado numa posição de paranoia que lembrava não só Corra! como também os escritos de Lovecraft, porque o contato com o horror enlouquece e é frequente que os protagonistas lovecraftianos morram sozinhos, incompreendidos, não do mal em si mas da loucura. Ao abandonar essa abordagem, então, é possível entender que o seriado a partir de agora vai seguir um caminho de mistério mais aventuresco. O tom de conspiração pode voltar, mas Lovecraft Country já sublinhou que a jornada toda é de reparação de laços, não só de reparação histórica, então definitivamente Tic não está sozinho nessa.