“Eu sou uma mulher normal, passo o dia inteiro pensando merda”, diz Vani (Fernanda Torres) na sua primeira cena de Os Normais, cujo primeiro episódio foi ao ar no dia 1º de junho de 2001, quando o Brasil nem sabia direito ainda quem era a tal da Fernanda Young, escritora jovem e promissora, que até então tinha assinado alguns bons episódios do especial A Comédia da Vida Privada. “Pensar merda” é um privilégio de poucos, serve como eufemismo para todas as divagações fúteis da mente, aquelas sem sentido prático, sem engajamento, mas tomadas de nervos humanos inerentes. Quando Os Normais estreou Fernanda já havia contado, na literatura, as vidas de outras de suas mulheres essenciais. A atmosfera de seu trabalho não se levava a sério, mas era emocionalmente séria. Suas protagonistas construíam raciocínios absurdos que nos faziam rir, mas com aquele recorte irresistível das coisas mais simples e mais identificáveis.
Em seus livros, os estereótipos eram mantidos à favor da comédia. Os homens eram programados para simplificação e desconexão, enquanto as mulheres problematizavam tudo e se sobrecarregavam de autopercepções. Não à toa, em todos os seus mais de dez romances, a protagonista era sempre uma mulher. Se Clarice Lispector poderia arrancar belezas poéticas de uma simples caminhada até o ponto de ônibus, Fernanda era igualmente capaz de tornar a mesma caminhada bela e lúdica, mas também tomada de conclusões extremas sobre o mundo, de apontamentos hilários sobre o constrangimento da vida e reconhecendo o valor da linguagem clara e da cultura pop. Era uma manipuladora das memórias popularescas, sagaz demais para a crítica literária e mais lírica do que queria que os outros percebessem.
A carreira de Fernanda na TV inclui quase vinte séries e ao menos dois programas. Enquanto recontava casais em Separação e Macho Man, zombava da indústria em Minha Nada Mole Vida e do sistema em Os Aspones, revelava-se interessante em frente às câmeras e por trás da máquina de escrever. Debateu o mundo em Saia Justa e zombou de si mesma em Irritando Fernanda Young. Havia se tornado uma versão cultural de si mesma, imageticamente forte, bela em tatuagens e personagens visuais, uma persona virtual posicionada, corajosa, cada vez mais afoita por mais material de mundo, mais atriz do que o sonho previu e uma escritora resistente a tudo. Porém, em meio a tantos títulos e tantos exemplos de sua obra, está justamente em Os Normais o item primordial que a marcou definitivamente na história da TV. Fernanda Young, Alexandre Machado e José Alvarenga Jr. criaram a série mais original que o Brasil já viu.
Vani
Era uma premissa muito simples. Rui (Luiz Fernando Guimarães) era um profissional do marketing que tinha todas as obsessões masculinas clássicas: mulheres, carros, futebol e simplicidade. Vani, sua noiva de anos, era mais complexa. Balconista e oriunda do subúrbio, ela era vaidosa, mesquinha, egoísta, amoral e completamente humana. Vani não tinha empatia, educação, quase nenhuma sensibilidade e distorcia o mundo de acordo com sua visão cínica e individualista. E era engraçada. Deus, como era engraçada. O enredo não tinha nenhuma firula central, basicamente só descrevia a rotina de duas pessoas que se afastavam progressivamente do sentido de “normalidade”, libertando a todos da pejoratividade da “maluquice”. Para Rui e Vani uma simples ida a um desfile, uma boate ou um shopping, poderia se tornar um compêndio de constrangimentos.
Em 2001, a televisão estava começando a mudar, os dramas alcançaram nobreza depois da HBO e as comédias esqueciam progressivamente as risadas de fundo para se entregarem à sofisticação do próprio discurso. É curioso falar em sofisticação quando lidamos com uma série escatológica como Os Normais, mas a construção cênica e técnica da série era diferente de tudo que já havia sido feito no Brasil, acostumado com esquetes de sábado à noite e famílias conservadoras. Os personagens quebravam a quarta parede, agiam como se estivessem sendo retratados num reality show, as transições de cena eram rápidas, fragmentadas, a narrativa era cheia de quebras espertas (saudades do mini-flashback) e os diálogos – mesmo que sobre os assuntos mais toscos – revelavam a extrema inteligência dos criadores quando recortavam percepções da rotina.
Na obra literária de Fernanda o tédio da vida cotidiana de classe média (um ponto em comum entre as protagonistas) era combatido com divagações extremas ou comportamentos secretos. Ana, a protagonista de Vergonha dos Pés, seu primeiro romance, também era escritora, mas preguiçosa, passava o tempo sendo cínica com o mundo e imaginando o livro que nunca conseguia escrever. Vani, que usava a agressividade como defesa, só queria ajustar o tédio de sua rotina ao que julgava ser o lugar que a validava como cidadã: ter um lar, ter um título, ter um amor. A cada episódio a personagem – sem saber – dava o maior exemplo de aceitação que o público poderia presenciar. Não importavam as loucuras de Rui, não importavam as loucuras de Vani... Eles eram melhores amigos um do outro, eles viam através do véu de insanidade as verdadeiras razões para que aquela história perdurasse.
Rita
O último trabalho de Fernanda Young na TV acabou sendo justamente sua retomada a essa ideia de complementação. Ela começou contando a história de um casal que tinha tudo para não estar junto e termina contando a história de um casal que também tinha tudo para não estar junto, mas que insiste e vence. Rita (Tatá Werneck) e Enzo (Eduardo Sterblitch), de Shippados, são diferentes de Rui e Vani porque estão desajustados em tudo na vida. O mundo os estranha e os repele, a rejeição é só o que conhecem, mas a despeito de tudo de estranho que os compõe, existe também a mesma necessidade de dividir-se no outro. É quase como se mais de dez anos depois, Fernanda e Alexandre precisassem voltar a falar de amor, precisassem voltar a falar de superar tudo que afasta e com isso, darem luz ao que assola secretamente tantas fatias da nossa sociedade. Em meio aos milhões que sustentam as redes, nunca fomos tão assépticos emocionalmente.
Presa em seu quarto de referências culturais, ouvindo vinis do submundo musical, gravando vlogs que ninguém vai ver e tentando se esconder da mãe, Rita combate a solidão com a fé de que cada encontro vai ser uma possibilidade de colorido e que algum dia essas cores vão chegar. Diferente do enfrentamento de Vani, Rita tem uma tristeza cotidiana mais condizente com os tempos da “falsa alegria virtual”. Ela é uma otimista enrustida, uma sonhadora involuntária. Em Enzo também está uma grande mudança de abordagem. Diferente do pragmatismo e confortabilidade de Rui, Enzo é sensível demais, parece não caber no corpo que lhe deram, tropeça, gagueja, se preocupa, se comove. Pelas ruas de Santa Tereza ele e Rita se entendem no próprio desajuste e olham para Rui e Vani, que um dia se entenderam na própria loucura.
As pessoas dos livros de Fernanda inspiraram nossos pedacinhos de cinismo divertido, nossa envergonhada vontade de otimismo... As pessoas das séries de Fernanda refletiram a emergencialidade do nosso coração, o riso frouxo escondido atrás da porta, a crônica ridícula da nossa existência. Sua voz será lembrada não porque foi perdida, mas porque foi única; e seu olhar não será esquecido, porque está nele a essência primordial de todos nós.
Despedida
Um dia, quando escrevi meu primeiro livro eu disse “sou tudo de errado que existe na consciência e certo mesmo é o que desenho com o espírito. Eu moro no ar. Sou uma realidade mixuruca e uma fantasia inebriada”. E só disse por que estava em mim, em algum lugar, os ecos de como te li. Deixo para todos nós as palavras finais de uma de suas obras, palavras que desenham uma despedida, que é sempre amarga quando o episódio termina ou quando o livro se fecha.
“Vejo o azul sereno através das pálpebras fechadas, guardei todas as cartas que li dentro de mim. Sinto meus pés leves e aquecidos. Tenho asas e estou voando. A vida deve ser exata, podo os excessos da massa que transborda pela forma. Sou uma cozinheira. Sou uma cientista. Sou livre para decidir cada próximo segundo da minha vida. Eu sou azul. Essa é a minha matéria”.
Fernanda Young
1970 - 2019