No dia 19 de Outubro o Globoplay exibiu em formato de Live o primeiro capítulo de Todas as Flores, novela criada e escrita por João Emanoel Carneiro, planejada para ir ao ar no horário nobre e depois redirecionada para a plataforma. Sabemos que a bolha da internet não representa a maioria do público, mas, ao mesmo tempo, ela também funciona como um termômetro do que está sendo bem-sucedido naquilo que é mais importante: a captação a longo prazo do público que vai determinar o futuro do entretenimento.
Travessia, que furou a fila de autores e tomou o lugar do horário nobre, havia estreado poucos dias antes. Todo o processo que levou até essa decisão foi se esclarecendo conforme os dias foram passando. Embora Verdades Secretas 2 tenha sido anunciada como novela, ela nunca foi encarada assim pelos tuiteiros da bolha. De fato, Todas as Flores é que acabou tendo o direito de assumir essa frente, sobretudo porque em sua estrutura é que podemos encontrar códigos comuns de uma novela como a conhecemos. O Globoplay está apresentando sua primeira novela em streaming; ao mesmo tempo em que apresenta outra na tradicional faixa das 21h da TV aberta.
É inevitável julgar essa decisão diante dos resultados vistos nessas três semanas de vida da trama de Glória Perez. Os números não são favoráveis, a recepção crítica também não e a presença de Todas as Flores na plataforma piora esse quadro. Apesar de ter tido problemas em títulos como A Regra do Jogo e Segundo Sol, João Emanoel Carneiro é visto pelos setores especializados (e por parte do público) como um autor que consegue equilibrar o folhetim clássico com a ousadia contemporânea. A ida dele para o streaming atrai uma fatia grande de interessados nesse mix, enquanto a presença de Glória no horário aberto funciona como um processo automático: a TV está ligada ali, mas pouco importa o que as pessoas vão dizer. Atrás do streaming só vai quem quer, quando quer. O que está no Globoplay precisa ser bom, ou ninguém vai.
Assim, Travessia funciona para o horário aberto como tem funcionado Mar do Sertão e Cara e Coragem: como uma zona de conforto. Nenhuma dessas três novelas (e estou aqui antecipando a morosidade da história das 21h) tem uma reputação positiva diante do público online; e é ele, o público online, que sustenta as bases do streaming até agora. Na hora de atraí-lo, a Globo escolheu alguém que está sob escrutínio das redes; e jogou no horário nobre alguém que pudesse manter a automatização da televisão ligada, em constância. Esse é o futuro, sem dúvida nenhuma.
Travessia
Depois de um sucesso que pode ser considerado como um dos mais progressistas do mercado, A Força do Querer parecia ter apresentado ao público uma Glória Perez decidida a recuperar o prestígio perdido com o fracasso colossal de Salve Jorge. O anúncio de que a novela trataria de deep fakes (processo onde o rosto de alguém é inserido digitalmente em fotos e vídeos) levantou uma questão que mesmo não tendo nada a ver, diretamente, com a novela, acaba interferindo na recepção dela: quem será essa Glória que fala sobre fakes? A que reconhece os tormentos nacionais provocados pelas notícias falsas ou a que encontra um jeito de ser partidária de suas convicções políticas, mesmo que indiretamente?
A história de Brisa (Lucy Alves) foi baseada no caso de Fabiane Maria de Jesus, uma dona de casa de 33 anos que foi linchada por causa de uma notícia falsa e morreu dias depois, no Guarujá, em São Paulo. A inspiração é literalmente somente uma inspiração, uma vez que todos os aspectos realmente dramáticos da situação foram ignorados por Glória Perez até agora. O linchamento de Fabiane foi brutal, cruel, durou horas e afetou profundamente as vidas de todos os que estiveram envolvidos nele: da pessoa que publicou a notícia falsa, passando pela família da vítima, até os que proferiram as agressões que causaram a morte; nenhum deles com um antecedente sequer, movidos pura e unicamente pelo que chamaram de “emoção do momento”.
O caso de Fabiane Maria aconteceu em 2014, quase dez anos atrás, o que acaba sendo relevante diante da rapidez com que a tecnologia e os meios de comunicação se movimentam. No caso real, os moradores de Morrinhos já estavam há dias lidando com boatos de uma “sequestradora de crianças para magia negra” e Fabiane foi confundida com um retrato falado ao oferecer banana para um menino. A histeria e a barbárie coletiva eclodiram quase que imediatamente, fazendo com que todos os envolvidos fossem movidos por um senso de “justiça” atrelado a questões morais e religiosas.
A Brisa de Travessia foi vítima de uma montagem bastante tosca feita por um menino em um aplicativo. Seu linchamento não chegou a 1% da violência vista na vida real e aconteceu em uma circunstância que não construiu nem medo e nem paranoia nos envolvidos com o crime. Foi um ataque superficial, sem verdade e que subestimou até mesmo os personagens terciários organizados ali para o levante. Não havia uma só pessoa presente que se perguntasse se aquilo não poderia ser um engano. Aspectos regionais, demográficos, sociais, pessoais, a ação do tempo... tudo absolutamente ignorado em nome de uma “inspiração” sem o menor escopo dramático.
Já que, ao contrário de Fabiane, Brisa não morre, foi necessário criar outros artifícios para que a história piorasse de rumo. Se Brisa morresse no linchamento, o impacto da fake news seria sentido com força pelos personagens em torno dela. O problema é que se ela não pode morrer, também não pode esclarecer nada... Começa, então, o “voo” de Glória até territórios frágeis. Uma situação capenga é inventada para Brisa ser acusada de estar com uma arma; outra situação capenga é criada para que ela minta para a polícia; ninguém pode tentar esclarecer nada ou a autora não tem como continuar sua narrativa. Tudo poderia ser resolvido em minutos - do mal entendido até a montagem tosca – mas ninguém também parece interessado em trabalhar com substância. A lista de inconsistências é infinita...
A vida da personagem ser destruída por causa daquela montagem parece risível no contexto em que está. Certamente, se Fabiane tivesse tido apenas alguns arranhões, como Brisa, e fugisse para provar sua inocência, ela o faria em um diálogo de 20 segundos. O retrato falado que a condenou também seria risível. Mas, Fabiane morreu, o que transforma esse cenário ridículo em algo absolutamente horrível. No caso de Travessia, ele é só ridículo mesmo.
Enquanto Jade Picon domina os comentários com uma atuação condizente com alguém de sua experiência, a trama central da novela parece um deboche diante dos verdadeiros problemas que a nação enfrenta quando o assunto são as fake news. Governos foram depostos e assumidos com base na divulgação dessas notícias; e estamos vendo isso acontecer novamente. Travessia virou um arremedo de dramaturgia, sorvendo sobrevivência da parte rasa do rio, soando como uma declaração de sua autora perante suas convicções políticas. Nada faz sentido ali, não há carisma entre os personagens, não há força no nó dramático da protagonista... e pelo amor de Deus, qual protagonista? Travessia é uma novela oca, uma novela-de-fachada, que mascara muito mal sua agenda de esvaziamento acerca de um problema sócio-político real, transformando-o numa absurda “brincadeira de menino”.
Todas as Flores
Na festa de lançamento de Todas As Flores (para o qual fui convidado, vídeo acima), além da linda decoração e do samba como principal atração da noite, o clima era de felicidade. Erick Bretas, chefão da plataforma, disse aos sorrisos que entrar no Twitter tem sido um prazer diário: só se fala bem da novela. O elenco presente e os jornalistas tinham em comum o otimismo com relação ao futuro da trama e a completa aversão ao mundo de Travessia, que agora transborda para fora do âmbito fictício e invade questões humanitárias. Com as declarações homofóbicas de Cássia Kiss em sintonia com os posicionamentos políticos da autora, a novela parece destinada ao pântano.
Todas as Flores não tem uma trama complexa, mas usa signos do mundo dos folhetins com equilíbrio e carisma. Maíra (Sophie Charlotte) é uma menina cega, do interior, que redescobre o contato com a mãe Zoé (Regina Casé), que a procura para pedir que a doação de sua medula salve a outra filha, Vanessa (Letícia Colin). É quase como estar diante de um enredo mexicano (mocinha cega, irmã maligna e mãe aproveitadora), mas bem feito, bem estruturado, com um texto sagaz e apuro técnico. Empresas, perucas loiras, maridos traidores, pobres escorraçados... Todas as Flores tem tudo que um “novelão” precisa. Tudo que o público que gosta de novela quer.
O que acontece com João Emanoel Carneiro é um fenômeno interessante. Apesar de ter tantos elementos folhetinescos, Todas as Flores também tem certa elegância e ousadia. Autores como Walcyr Carrasco – que também mergulham fundo na linguagem popular – não conseguem o mesmo feito. Novelas como O Outro Lado do Paraíso e A Dona do Pedaço pareciam uma farofa de esquetes rodando em looping. Ainda é cedo para dizer que Todas as Flores estará totalmente isenta disso (não podemos esquecer que João Emanoel já criou Merlô), mas com 85 capítulos planejados e com a liberdade do streaming, é praticamente impossível errar.
A trama central da novela é carregada por um trio de atrizes incrivelmente boas em dominar personagens. Sophie não deixa Maíra ser dependente; Letícia não perde o humor na construção de Vanessa e Regina ainda sofre para não ser maternal, mas está no caminho certo. Nicolas Prattes está vivendo o papel de sua vida e Ana Beatriz Nogueira surge como uma mãe compreensiva, num investimento inverso do que geralmente lhe colocam nas mãos. Ainda há aquele tom de comédia barata nos núcleos de personagens paralelos; mas, até isso serve ao propósito de não permitir que a novela deixe de ser novela.
O fato é que quanto mais capítulos de Todas as Flores assistimos, mais fica claro que Travessia foi encomendada com o mínimo de expectativas. É claro que a emissora não quer fracassos de nenhuma espécie, mas tampouco estava considerando que a novela de Glória Perez fosse valer o tempo dos assinantes. Talvez ter duas novelas das 21 ao mesmo tempo seja injusto com os autores... É evidente que uma delas sempre será mais celebrada que a outra. Mas, ao mesmo tempo, como lançar uma novela no streaming sem que ela acabe sendo comparada com outras? Os envolvidos vão precisar se acostumar com as coisas como elas são. No momento, Travessia dá todos os motivos para ser rejeitada (motivos dentro e fora da tela). Todas as Flores, enfim, é a redenção do formato. Curiosamente, é a redenção do formato... em outro formato. Essa é a televisão do futuro, que olha para o passado, pisca para ele, mas não se deixa hipnotizar pela poeira que cobre a mobília obsoleta.
Está definido...
... que Letícia Colin é uma das maiores atrizes do país. Caiu nas mãos dela uma personagem que pesa tanto a mão na vilania, que por vezes poderia ser comparada à falta de camadas de Maria Regina, em Suave Veneno (que Letícia Spiller penou para equalizar). Mas, o humor que Spiller demorou para agregar ao papel já está na conta de Colin desde o primeiro capítulo. Vanessa é uma pessoa horrível, mas foi construída com tiradas espertas, o que, para uma vilã contemporânea, é essencial. Regina Casé também deveria ser uma vilã, mas até agora ainda não conseguiu se livrar do tom apaziguador que fez da Lurdes de Amor de Mãe uma das personagens mais amadas da história da TV.
Está a definir...
... o quanto nos incomodaremos com João Emanoel Carneiro repetindo seu tradicional núcleo de personagem gay vivendo em códigos heteronormativos. Dessa vez, Nilton Bicudo já entrou em cena como bissexual e o fato de dividir a cena com Thalita Carauta alivia muito a nossa irritação com essa recorrência estranha do trabalho de João. Por alguma razão, a homoafetividade sem elementos heteronormativos envolvidos é impossível para ele. É esperar para ver onde essa trama vai chegar.
Quem quiser conferir um pouco da festa de lançamento da novela e ouvir um recado de Letícia, Regina e Nicolas, só dar play no vídeo no topo da página.
Sobre a coluna Ovo Mexido
Todo mês, a coluna fala sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma.