Em uma de suas obras, o filósofo Friedrich Nietzsche resumiu grande parte da nossa cultura pop numa única frase: “A crueldade é um dos prazeres mais antigos da humanidade”. Para ele, a crueldade nem é só um ato de maldade para com um interlocutor, mas é necessária para o curso da vida, para o equilíbrio da existência. E ele diz mais... O humano de Nietzsche acredita no “jogo” e para ele “não há outro modo de lidar com as grandes tarefas se não for jogando”. Criou-se aí o ciclo no qual estamos presos até hoje. Somos atraídos pela crueldade e é só “jogando” que somos submetidos a ela ou nos livramos dela.
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Round 6 une esses dois pontos: a crueldade e o jogo. E a euforia com a qual ela tem sido recebida tem um motivo: a série talvez seja a que fisgou com mais competência a nossa curiosidade mórbida (pela crueldade) e a nossa competitividade clássica (pelo jogo). Mais de 400 pessoas topam uma empreitada estranha, misteriosa, para tentar se livrar das próprias dívidas; e quando percebem que isso pode lhes custar a vida, são avisadas de que elas têm sim, uma escolha. O mais emblemático disso tudo é que esses personagens, quando devolvidos à vida que tinham antes, percebem que ela é muito mais cruel que o jogo em si. Então, eles voltam, confirmando Nietzsche, com tudo que há de mais primitivo na alma humana.
Hwang Dong-Hyuk criou Round 6 há muitos anos, quando ele mesmo estava passando por muitas dificuldades financeiras. O projeto nunca saía do papel porque ali, nos primeiros anos dos anos 2000, o conceito de crueldade que ele propunha ainda não era palpável para a realidade sul-coreana. Os Jogos Mortais de James Wan ainda estavam começando sua trilha de popularidade no Ocidente, mas o streaming, que flexibilizou muito mais as capacidades narrativas do mercado, ainda era um borrão comercial. A demora sofisticou o conceito e o que a Netflix entregou ao mundo no dia 17 de Setembro de 2021, foi um produto que foi muito mais além do simples “pão e circo”.
O Jogo da Lula
Para dar ao roteiro o “requinte” da crueldade, o criador Dong-Hyuk resolveu preparar sua história seguindo a trilha de algumas das brincadeiras infantis que ele conhecia e que considerava simples o suficiente para serem reconhecidas no mundo todo. Enquanto “Batatinha Frita 1, 2, 3...” e “Cabo de Guerra” são identificáveis imediatamente, a brincadeira que serviu como núcleo da história tem versões diferentes e um nome curioso: Jogo da Lula.
Aqui no Brasil existe uma versão chamada Pique-Bandeira que tem um conceito parecido: são dois lados tentando penetrar o terreno do outro. Para impedir vale tudo, mas geralmente um toque no adversário paralisa o mesmo no campo oposto. Se um jogador consegue atravessar todo o território inimigo e chegar na bandeira, ele se torna intocável e o jogo termina quando a bandeira de um lado é conquistada pelo outro.
O Jogo da Lula é parecido. O nome vem do formato que é desenhado no chão (como se fosse um molusco) e a premissa é a mesma: dois lados e dois objetivos, que são eliminar os outros jogadores e conquistar a “cabeça da Lula”. Olhando por cima pode parecer corriqueiro, mas o jogo reúne todos os elementos que o tornam ideal para ilustrar a ideia da série. Atacantes e defensores precisam proteger fronteiras fazendo sacrifícios (como andar com um pé só), mas apesar do senso de coletividade, a batalha final representa a “expulsão”, a eliminação, a queda no “abismo”, a “morte”.
A Sorte Vs A Força
Desde o começo de Round 6 a trama usa o vizinho bem sucedido de Gi-Hun (Lee Jung-Jae) como seu oposto. Sang-Woo (Park Hae-Soo) vive de aparências, mas no mundo contemporâneo as aparências são a primeira porta aberta. Ele nunca agiu com honestidade em nada na vida, mas sua aparência, o modo como se veste, a forma como fala, dão a ele a visibilidade certa. A decadência em que Gi-Hun foi jogado está estampada na cara dele, em tudo que ele diz, faz, usa... Eles não brincaram do Jogo da Lula apenas quando crianças (e isso que é mais fascinante). Por toda a vida eles “lutaram”, um para ficar na linha e o outro para jogar o adversário fora dela. E assim eles chegaram ao sexto round.
Essa chegada também aconteceu de maneiras muito distintas. Em cada uma das provas, os dois foram seguindo em frente usando métodos que refletiam suas personalidades. No primeiro jogo, por exemplo, Sang-Woo usou outros participantes como escudo e Gi-Hun teve a sorte de ouvir essa dica. E até que chegassem na etapa das bolas de gude, eles foram conseguindo se manter no jogo porque fizeram boas escolhas, mesmo que não soubessem muito disso. Até que Sang-Woo perdeu a humanidade quando enganou Ali (Tripathi Anupam) e a partir daí Gi-Hun seguiu se apegando à sorte, enquanto Sang-Woo começou a usar a força. E somos totalmente capazes de nos ver espelhados nos dois, torcendo para que sejamos como Gi-Hun, que se aliou às pessoas certas. Mas, sabendo, secretamente, das nossas chances de nos selvagerizarmos no percurso, como aconteceu com Sang-Woo.
Arena
Nada em Round 6 é aleatório. O espaço onde os jogos acontecem é por si só um grande spoiler: desenhos das brincadeiras que serão usadas para criar as tarefas estão por toda parte, mas são cobertos pelas beliches em que dormem os competidores. E é muito curioso, porque embora haja o fator mortal da competição, ela funciona dentro da própria ética. Se a maioria desistir acaba tudo, todo mundo volta ileso. As regras são respeitadas e o prêmio é realmente direcionado ao vencedor. Pistas, normas, resultados, tudo segue às claras. Esse também é um diferencial da série.
Outro detalhe interessante é que assim como vemos no BBB (onde os funcionários usam uma fantasia padronizada que cobre seus rostos), em Round 6 os soldados usam a mesma roupa, da mesma cor, também com máscaras, que têm símbolos hierárquicos. Os que têm o círculo ocupam somente uma função, assim como quem possui os triângulos e os quadrados. Além disso, na Roda das Cores, o rosa (cor dos uniformes dos soldados) tem como opositor o verde (cor das roupas dos competidores). O que algozes e confinados têm em comum é a total falta de identidade. Os que têm armas não têm rostos e os que são vulneráveis a elas são apenas números.
Round 12?
O sucesso de Round 6 é impressionante. E quando se fala de sucesso inevitavelmente se fala de sequências. O criador da série já declarou que não gostaria de continuar a trama, mas diante de um fenômeno como esse é praticamente impossível que a Netflix não o convença do contrário. Mesmo porque, há questões a serem resolvidas na série. A vitória de Gi-Hun não representa, de maneira nenhuma, uma redenção para o personagem. Contudo, as perspectivas para um futuro não são exatamente positivas.
Um dos grandes trunfos da série era seu fator surpresa. Quem assistiu sem ter lido absolutamente nada sobre o assunto teve uma experiência ainda melhor. A vertigem que o protagonista vivia também era um pouco nossa. E aí está o terreno pantanoso do que poderia ser uma segunda temporada: se Gi-Hun voltasse para o jogo seria com outra atitude e a série perderia o foco na vulnerabilidade do jogador principal. Se eles colocarem um co-protagonista que seja o apavorado da vez, a série se repete. Uma vez conhecida a estrutura narrativa, fica difícil salvar a produção do cansaço, um risco que La Casa de Papel, por exemplo, resolveu correr descaradamente, mesmo que o conceito de “roubo super planejado” fosse bastante restritivo. E uma temporada com Gi-Hun só perseguindo os realizadores do jogo, sem a competição como foco seria terrível.
Contudo, esperar por novos rounds parece ser o único movimento possível para os espectadores. A euforia diante de algo tão bem construído ainda está no estágio do puro encantamento e parece natural querer ter mais história para contar. Não é só a crueldade um dos prazeres mais antigos da humanidade. A arte também é.