O ano era 2013. Fãs de sitcoms e de comédias americanas comemoravam que a Netflix, após salvar Arrested Development do cancelamento, estava lançando a quarta temporada da série - agora com o selo de “original”. Corta para dez anos depois: esse mesmo público ficou alarmado com a notícia de que a produção, criada por Mitchell Hurwitz, deixaria o catálogo da plataforma (incluindo os episódios exclusivos) nesta quarta-feira, 15.
No Brasil isso não se confirmou: a série segue disponível no streaming - e, agora, sem nenhum aviso sobre uma retirada. Já de acordo com os sites uNoGS e Flixboss (que fazem esse tipo de monitoramento), a data de remoção foi remarcada para o dia 25 deste mês. Pode ter acontecido também uma renovação contratual, ampliando esse prazo em meses ou até anos. Contactada, a Netflix não respondeu às dúvidas até o fechamento deste texto.
Seja como for, a confusão é representativa de uma fase nova, na qual os streamings abrem mão até de conteúdos originais lançados há anos. O que realmente está ocorrendo?
Com tantas dúvidas que surgem, o Omelete foi em busca de respostas.
Arrested Development é o exemplo perfeito para essa investigação. Produzida pela antiga 20th Century Fox Television (em parceria com a Imagine Television, de Ron Howard e Brian Grazer), foi vendida para o canal aberto americano Fox, na época do mesmo grupo, onde estreou em 2003. A emissora cancelou a série após apenas três temporadas, em 2005. A justificativa oficial foi a baixa audiência, ainda que a produção fosse muito elogiada pela crítica e tivesse um elenco de peso, com nomes como Jason Bateman, Will Arnett e Michael Cera.
Anos depois, a Fox Television fechou um acordo de “segunda janela” com a Netflix. Dessa forma, o estúdio licenciou suas produções de catálogo (ou seja, mais antigas) para a plataforma, que ainda engatinhava. Muitos distribuidores fizeram o mesmo naqueles tempos, dando a impressão de que o serviço - pioneiro em seu setor - era uma grande biblioteca do audiovisual, com praticamente tudo.
Arrested Development foi um sucesso em seu novo lar, fazendo com que a Netflix a salvasse mesmo seis anos após o seu cancelamento - algo fora do usual na indústria. Nesse formato, ganhou mais duas temporadas, lançadas também com um grande hiato entre elas, entre 2013 e 2019. Junto, veio o banner escrito “original”.
Esse selo talvez seja a parte mais confusa. Na Netflix ele nunca teve um significado muito claro: pode representar um conteúdo que a empresa investiu desde o começo e da qual é a dona da marca, como Stranger Things. Porém, em última instância, significa também que o streaming tem apenas os direitos de exibição exclusivos por um determinado tempo, em acordos que podem - ou não - serem renovados.
Neste último exemplo, a lembrança mais famosa é a das séries da Marvel Television, como Demolidor, Jessica Jones e Os Defensores. Criados lá atrás, esses títulos eram exclusivos da Netflix por um período determinado, apesar de serem considerados como originais. Quando o contrato acabou, tudo migrou para o Disney+.
Já os fãs de Jornada nas Estrelas vão se lembrar de Star Trek: Discovery, lançada (fora dos EUA) como um original na plataforma e levada para o Paramount+ na ocasião de sua quarta temporada.
Questionada se este era o mesmo caso de Arrested Development, a Netflix não se pronunciou. No entanto, o Omelete apurou que, sim, a produção estrelada por Jason Bateman está deixando o catálogo do serviço por conta do fim do licenciamento - esse mesmo que pode ter sido renovado aos 45 minutos do segundo tempo, algo que já ocorreu no passado.
Hoje, a 20th Century Television (já sem a marca Fox) pertence à Disney, que encerrou os acordos existentes com outros streamings para privilegiar as suas próprias plataformas. Por isso, a principal aposta era que Arrested Development seria, em breve, disponibilizada no Star+. A marca Star foi criada justamente para substituir o nome Fox.
Ao Omelete, a Disney informou que não há, no momento, qualquer previsão de ter a série no serviço.
Vigilantes de Gotham sem um lar
A Netflix não está sozinha - dá para dizer até que a retirada de conteúdo está mais intensa em outros streamings. O maior exemplo é o da HBO Max.
Após a fusão entre WarnerMedia e Discovery, o grupo está passando por uma série de cortes e adequações para enfrentar este momento adverso do mercado. Entre eles, o agora famoso cancelamento de Batgirl.
A produção estrelada por Leslie Grace estava quase pronta, mas a nova direção do grupo acredita que não há mais espaço para filmes de médio orçamento feitos para a internet e que o longa-metragem não teria qualidade o suficiente para ser lançado direto no cinema. Preferiu, então, guardar os rolos em algum cofre e fazer uma manobra contábil para pagar menos impostos.
Outro exemplo dessa nova política da Warner Bros. Discovery é Batman: Caped Crusader. Assinada por nomes como J.J. Abrams e Matt Reeves ao lado de Bruce Timm (um dos responsáveis pela animação do Homem-Morcego dos anos 1990), a série pensada para ser um original da HBO Max foi descartada ainda na fase de pré-produção. Acabou sendo salva pela Amazon, que a exibirá o desenho animado com exclusividade no Prime Video.
Essa parceria entre a Warner Bros. a empresa fundada por Jeff Bezos tem se tornado mais forte, incluindo a disponibilidade (sem exclusividade) de diversos títulos do estúdio no mesmo Prime Video.
O movimento surpreende quando lembramos que, há um pouco mais de um ano, parecia que a Warner iria direcionar todo o esforço para o seu próprio streaming. Hoje, quer mitigar riscos produzindo e licenciando também para os concorrentes. É o que o mercado está chamando de “negociador de armas”, justamente por vender conteúdo para qualquer um, em nome do dinheiro. Um comportamento comum na indústria armamentista.
O caso Westworld
Tudo isso está afetando produções lançadas no passado. Westworld, produzida pela HBO Entertainment e pela Warner Bros. Television, foi retirada da HBO Max em dezembro. O caso é um pouco diferente do de Arrested Development: não se trata do fim do contrato de licenciamento, já que a ficção científica é uma propriedade do grupo, mas sim de uma mudança de estratégia.
Em nota oficial para a imprensa americana, a Warner afirmou que retirou o título (junto com The Nevers e outras séries) para, em breve, disponibilizá-los com exclusividade no modelo chamado FAST - sigla em inglês para Free Ad-supported Streaming Television, ou “televisão de streaming bancada por publicidade”, em tradução livre.
Basicamente, são serviços on-line com diversos canais lineares, com programação ininterrupta, imitando o formato da antiga TV paga. A Pluto TV é a mais conhecida nesse modelo, mas há também Roku Channel, Amazon Freevee e Tubi.
A própria Warner anunciou que terá em breve o seu próprio FAST, com este podendo ser o destino de Westworld. A retirada de títulos com antecedência ajuda a criar demanda para um relançamento, seja em um novo FAST ou em plataformas já existentes.
Contactada pelo Omelete para entender melhor essa movimentação, a Warner Bros. Discovery informou que “continua avaliando estrategicamente a melhor forma de maximizar sua audiência e as oportunidades de monetização de seu conteúdo”.
A nota continua: “A companhia está explorando o licenciamento de certas programações originais para serviços terceirizados, e, conforme anúncio realizado recentemente para os Estados Unidos, referente aos serviços FAST (baseados em publicidade), este é o primeiro passo que conduzirá à expansão de um novo público para essas séries. Enquanto nos preparamos para esta transição, algumas séries foram removidas da plataforma.”
A casa de Star Trek?
Toda essa movimentação acaba causando situações inusitadas. Entre elas, a de Star Trek. Um dos argumentos na promoção do Paramount+ é o fato do streaming ser a “casa” da franquia. Faz sentido: Jornada nas Estrelas foi comprada pelo estúdio, junto com a produtora Desilu, em 1968, desde então se tornando quase que um sinônimo da marca Paramount. Só que não é o que ocorre na prática, com o serviço “devendo” boa parte desse catálogo.
Há uma explicação. Por alguns anos o grupo foi dividido em dois: de um lado havia a Viacom, que tinha em seu guarda-chuva a Paramount Pictures e o catálogo de filmes, incluindo Jornada. Do outro ficava a CBS Corporation, compreendendo as iniciativas de TV (e, por isso, as séries da franquia). A reunificação das duas resultou na ViacomCBS, hoje Paramount Global, que já nasceu com diversos contratos anteriores ainda em vigor, pensados em outras gestões e com outros objetivos.
É por isso que o conglomerado não consegue ter tudo em seu próprio streaming. Jornada nas Estrelas: A Série Clássica, Jornada nas Estrelas: A Série Animada, A Nova Geração e Deep Space Nine, Voyager estão, hoje, apenas na Netflix. Star Trek: Prodigy, Discovery e Strange New Worlds são exclusivas do Paramount+. Já Jornada nas Estrelas: Enterprise está nas duas. Para fechar a confusão, a terceira temporada de Star Trek: Picard está sendo lançada neste momento com episódios semanais no Prime Video e no Paramount+.
Tudo resultado de acordos de licenciamento feitos no passado. No caso da Netflix, o papel foi assinado em 2016.
Tudo fica ainda mais curioso com os filmes. Sete dos 13 longas-metragens de Star Trek estão no Paramount+ e na Pluto TV, que é do mesmo grupo. Já as três das quatro produções estreladas pela Nova Geração - Primeiro Contato, Nêmesis e Insurreição - estão apenas na Pluto, em versão dublada sem a opção de legendas. Por fim, os três longas do reboot liderado por J.J. Abrams - Star Trek, Além da Escuridão e Sem Fronteiras - não estão em nenhuma plataforma por assinatura ou no modelo FAST. Na internet, a única opção (legal) é via aluguel ou compra, em lugares como Apple TV e Google Play.
Contactada para explicar melhor os contratos em vigor e a estratégia de distribuição, a Paramount respondeu que não iria se pronunciar sobre o assunto.
Residuais, royalties e remasterizações
Superada qualquer questão de licenciamento ou estratégia, há ainda outras barreiras que podem colaborar com a remoção do conteúdo do streaming - isso se ele for, em algum momento, disponibilizado.
Muitas vezes a disponibilidade de um filme ou série resulta em pagamento residuais para os envolvidos na produção - como produtores e roteiristas. O título também pode ser derivado de alguma propriedade intelectual de terceiros, como uma marca de brinquedos, o que envolve o pagamento de royalties para continuar em uso. Dependendo de como esse acordos foram feitos, a audiência e outras variáveis, pode ser mais fácil (e mais barato) simplesmente retirá-los da internet
A questão também envolve dublagens. Contratos antigos podem não compreender as “novas mídias”, exigindo novos pagamentos ou até mesmo mudanças nos arranjos jurídicos. Em alguns casos, é melhor redublar. Em outros, nem isso compensa.
A Sato Company, por exemplo, preferiu não distribuir com dublagem os seus tokusatsus (séries de heróis japoneses, como Jaspion e Black Kamen Rider) após não entrar em acordo com algumas vozes nacionais dessas produções. Os seriados nipônicos podem ser encontrados no Prime Video e na Pluto TV apenas com o áudio original em japonês.
Por fim, há um âmbito técnico: nem sempre as cópias disponíveis estão dentro dos parâmetros de qualidade mínimos dos streamings. Exceções podem ser feitas, mas em muitos casos é necessária uma remasterização - o que pode trazer um custo proibitivo, dependendo do tamanho do público.
Resumindo: filmes e séries sofrem em meio a decisões intempestivas, contratos anteriores, mudanças de rumo e questões financeiras. Quem decide hoje discorda do que foi feito ontem, e o amanhã é uma incógnita.
Pior para nós, espectadores.