Não é só Dahmer: o que fascina e atrai tanta gente nas produções de true crime

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Não é só Dahmer: o que fascina e atrai tanta gente nas produções de true crime

Produção inspirada em serial killer reacendeu o debate sobre o gênero

Omelete
6 min de leitura
22.11.2022, às 11H35.

O sucesso da série Dahmer e o aumento do consumo de true crime nos últimos anos é, definitivamente, um recado, mas talvez não seja o recado que você imagina. A série chocou muita gente com o realismo das cenas e, ainda assim, acaba de fechar contrato para duas novas temporadas. A questão é que, muitas vezes, quanto mais uma série choca, mais público parece ter. Monster, a série que tratou de Jeffrey Dahmer e vai mostrar a vida de outros serial killers está a pleno vapor e, com ela, várias outras produções que envolvem crimes reais têm recebido a atenção do público. É aí que vem a inevitável pergunta: mas por que as pessoas têm gostado tanto de true crime? 

Podemos pensar, num primeiro momento, que consumir esse tipo de conteúdo nos faz mais violentos e perigosos, como se acessar esse lado nosso fosse algo novo, não olhado, recém descoberto e que deveríamos brecar. Porém, desde que existe a lei, existe o crime. Desde que existe a vontade do ser humano de criar ordem, existe a vontade de quebrá-la e, mesmo para aqueles que não a quebram, existe a curiosidade de entender como funciona a mente de quem não tem medo nem limites. Há, sem dúvida, um fascínio por vilões, sejam da ficção ou da realidade.

Em Dahmer, por exemplo, há algo ainda mais interessante, pois a série traz os desdobramentos de tais assassinatos horrendos na comunidade e, com isso, discussões sobre racismo e o papel da polícia – quem, de fato, ela tenta proteger? Além disso, Dahmer não glamoriza o assassino, o que é importante considerar quando fazemos este tipo de conteúdo. O Dahmer da série é oco. Mesmo que ele se sinta solitário, não conseguimos nos relacionar com seus medos e anseios, pois estes não parecem humanos diante dos contextos, já que suas preocupações fogem do que seria usual nas situações pelas quais ele passa. É a máxima do “seria cômico, se não fosse trágico”. Em Dahmer, nos identificamos mais com as vítimas do que com o assassino, pois as vítimas, sim, são humanizadas - como a vizinha que percebe que há algo de errado e tenta avisar quem consegue.

Mas quando contestamos o gosto pelo true crime, algo sobre nós vem à tona. Em um primeiro momento, tendemos a achar que o mal é sempre o outro, porém, quando olhamos mais profundamente para nós mesmos, entendemos que existe um sadismo ou masoquismo sutil comum a todos. Algo que não podemos expor tão livremente na sociedade por dividir o espaço com outros, mas que está lá. Portanto, gostar de assistir a algo violento ou bizarro seria o acesso mais próximo ao lado do nosso inconsciente que não pode ser comumente acessado em conversas mundanas, a não ser que estejamos especulando sobre acontecimentos violentos junto de amigos ou familiares. Em sociedade, é permitido falar sobre true crime, desde que estejamos tentando fugir dos bandidos ou pegá-los, mas é fato que a questão vai muito mais longe do que isso. 

É inegável que as séries, os filmes e o termo “true crime” trazem o afastamento necessário para discutir o horrendo, pois tornam o mal algo quase fictício. Como se fossem crimes diferentes dos ocorridos no final da nossa rua, cuja cobertura só seria feita por algum jornal sensacionalista. O gênero parece fazer da natureza do crime algo quase distante da realidade, apesar de real - Hollywoodiano, talvez. Faz parecer menos ameaçador, difundindo as discussões sobre violência sem que o medo nos acesse profundamente. 

Acontece que o true crime, sem dúvida, tem origens ancestrais. De espectadores de mulheres mortas em fogueiras durante a inquisição às lutas no coliseu; do público que assistia a assassinos serem mortos no corredor da morte ao linchamento de pessoas em praça pública. No século XVII, sermões de pastores, antes das execuções de criminosos, viraram livros, assim como confissões de crimes. Apesar disso, talvez não tivéssemos clareza sobre este nosso lado não tão bonito.

Por que agora?

Estamos, pela primeira vez, vivendo uma geração que fala sobre seus problemas. Uma geração que faz análise, terapia, que discute suas questões mais profundas e tenta entender mais sobre si sem o estigma de “loucura”, que acompanhava quem tentasse fazer o mesmo até décadas atrás. Deixamos de negar o pior lado de nós mesmos. Além disso, a pandemia da Covid-19 nos trouxe proximidade com a morte e o sentimento de uma ameaça constante. Já as redes sociais dividiram o sentimento comum de medo que acessava pessoas em qualquer lugar do mundo. Um assunto que talvez parecesse mais longe de nós, dito e discutido em momentos específicos, nos acessou inesperadamente, abruptamente, ininterruptamente e nos fez conversar sobre ele, seja pelo medo do nosso próprio fim ou pela perda de alguém próximo. O horror sentou-se à nossa mesa e nos forçou a enxergá-lo. O true crime, por sua vez,  traz o mal personificado, o mal que, mesmo que venha inesperadamente, podemos ver ou tentar impedir, muito diferente de um vírus mortal e invisível.

Dahmer nos trouxe um serial killer mais próximo de como ele seria sentido em sociedade: alguém com um comportamento que, se prestarmos atenção, não nos conecta, mantém uma distância. Lembra, na verdade, mais um boneco de cera do que um ser humano, pois é uma pessoa que fala, come, anda, mas parece vazio, quase como se não estivesse lá; de fato, talvez não estivesse, já que os psicopatas não se relacionam com o mundo através dos afetos, mas através do que eles entendem como uma ameaça e que, por não conseguirem colocar em palavras nem significar, é exposto no mundo de um jeito torto.

Alguém de estrutura neurótica (o que dentro do conceito psicanalítico é a estrutura mais comum), não se torna psicótico ou perverso. Em outras palavras, consumir esse tipo de conteúdo não vai te tornar um assassino, nem vai mudar a maneira como você se relaciona com a sua fantasia, mas talvez faça com que você aprenda melhor como se proteger deles. Assassinos já seriam assassinos com ou sem acesso a esse tipo de conteúdo. 

Alguém que, de fato, mata, passa por construções psicológicas e sociais muito severas desde a infância. Na construção de um assassino, algo geralmente segura o psicológico fraturado: a família, a escola, os vizinhos, os amigos e, principalmente, o entendimento de alguma conexão com o outro, feita de alguma forma que faça sentido para ele. Ainda existe a imaginação, que pode se encarregar de criar uma fantasia de amizade ou proteção com um objeto inanimado ou um bichinho, mesmo que ele não a tenha com alguém real. Ainda assim, isso é a busca de um acesso afetuoso. Muita coisa na construção de uma pessoa precisa falhar para que ela se torne alguém que liquida o outro e, ainda assim, mesmo que tudo falte, não há garantias que esta pessoa vá, realmente, sentir o desejo de matar alguém.  

A partir do momento que entendemos que estamos evoluindo, quando acessamos nosso lado mais profundo e não tão bonito, talvez isso nos faça negar menos o que nos agride, além de levantar a importância de uma discussão em relação ao que pode ou não nos quebrar como seres humanos.

Quando trago esse tipo de discussão, lembro-me sempre de um homem que, depois de ler meu livro, Vantagens que Encontrei na Morte do meu Pai - que conta a trajetória de uma assassina em crise psicótica -, me disse o quanto a história o fez pensar sobre como ele estava criando a filha e o quanto o livro o havia mudado como pai. Elogio maior do que este, para mim, seria impossível. Então, no final das contas, talvez o true crime e até o horror sejam uma espécie de salvação. Uma maneira de acessar o pior em nós, o pior no outro e, mesmo que através de nossa sutil perversão, nos motivar a cuidar melhor uns dos outros.

Quantas pessoas começarão a ser mais cautelosas ao aceitar drinks de estranhos depois de assistir à série? Sei que eu, sim.

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