Em 2000 estreava na televisão Yu-Gi-Oh!, adaptação do mangá de Kazuki Takahashi sobre fantasiosas disputas de cartas. O anime se tornou um fenômeno, virando também game e, claro, recebendo uma versão física do jogo de cartas, febre no mundo todo em disputas casuais e acirrados campeonatos. No Brasil não foi diferente, mas esse prestígio todo veio atrelado de uma polêmica religiosa.
Transmitido no Brasil pela TV Globinho, o anime conta a história de Yugi Muto, um garoto que completa um artefato egípcio conhecido como o Enigma do Milênio e herda um espírito ancestral conhecido como Faraó. Juntos, eles se tornam grandes jogadores de Mestres do Duelo, jogo de cartas criado pelo vilão Maximillion Pegasus, que sequestra o avô de Yugi para forçá-lo a entrar no torneio Reino dos Duelistas. O garoto aceita o desafio ao lado de seus amigos Joey Wheeler, Tristan Taylor e Téa Gardner.
Em pouco tempo, a animação se tornou um sucesso estrondoso no Brasil. Além do desenho, do próprio mangá e de vídeo games, foi lançado um jogo de cartas inspirado na franquia. Popular entre a garotada, ele não só reproduzia o jogo visto no desenho, como as utilizava para brincadeiras mais tradicionais, como bafo. Porém, rapidamente veio uma onda de “pânico”.
Igrejas evangélicas por todo o país começaram a afirmar que Yu-Gi-Oh era um baralho satânico, principalmente porque o jogo utilizava de termos como “monstros e armadilhas”. O que começou como um boato ganhou grandes proporções após Gilberto Barros acusar o jogo de praticar satanismo em seu programa na TV Bandeirantes, o Boa Noite Brasil. Durante quase uma semana, o apresentador fez ataques diários, ligando o cardgame não apenas ao ocultismo, mas também à Yakuza, a máfia japonesa. Para dar força ao argumento, exibiu uma cena do filme Dragon Ball Z - A Árvore do Poder (como se fosse Yu-Gi-Oh), em que Gohan se transforma em um macaco gigante como parte do plano de um dos vilões, que se gaba por fazer o filho esmagar o próprio pai.
Gilberto Barros apelidou carinhosamente as cartas de Yu-Gi-Oh! de "baralho do diabo"
A reação foi instantânea. Pais e mães fizeram com que seus filhos jogassem fora ou até queimassem suas cartas para não correr o risco de que o demônio entrasse em suas casas. “Meus pais são muito religiosos, e quando qualquer coisa bomba, como foi com o TGC [The Card Game] de Yu Gi Oh!, começam as histórias de demônio”, conta Gabriel Barreto ao Omelete, que tinha 7 anos de idade na época do alvoroço. “Meus pais não sabiam do que eram as cartas até começar a sair essas histórias na TV, falando que eram coisa do Satanás”.
Cartas com nomes mais apelativos, como Mago do Caos das Trevas por exemplo, causavam horror imediato e pareciam justificar as ações dos pais mais conservadores:“Quando meus pais assistiram o Boa Noite Brasil e viram a polêmica, começaram a ver o baralho e ver as imagens delas, e algumas eram realmente bizarras. Então eles assimilaram uma coisa com a outra e fui obrigado a jogar fora ou doar pra alguém, e acabei doando.”
Para invocar o Exódia, era preciso juntar todas as partes de seu corpo
Gabriel Barreto dificilmente foi o único a ser forçado a doar sua coleção de cartas. Na verdade, algumas crianças também compraram a paranoia dos pais, da TV ou mesmo dos amigos: “Alguém na rua, ou na escola, começou a espalhar isso, que era do diabo por causa do Exodia, daí eu caí no papo”, relembra Bárbara (que, por conta do quão anormal foi a situação, preferiu não ter o sobrenome citado). “Uma bela tarde eu peguei a sacola de card do Yu-Gi-Oh e rasguei com mó medo, principalmente as cartas do Exodia.”
Histórias de histeria coletiva, especialmente relacionadas ao ocultismo, não são novidades, e cada país tem a sua própria. Nos Estados Unidos, por exemplo, o movimento para censurar jogos violentos, músicas de rock e coisas do tipo foi tão grande entre as décadas de 1970 e 1980, que até hoje ele é conhecido como “Satanic Panic”. Com bonecos do Fofão, músicas da Xuxa e até um inofensivo anime, pode dizer que o Brasil teve seu próprio “Pânico Satânico”.
Por aqui os registros da polêmica de Yu-Gi-Oh! são, no mínimo, escassos, afinal não havia Youtube para preservar coisas do tipo para as gerações futuras. Mas o surtofoi tão grande que mentiras cada vez mais absurdas foram veiculadas, como que um dos monstros do jogo teria ganhado vida e comido um jogador no Japão.
Com o tempo, todo esse alvoroço passou. Yu-Gi-Oh! não chegou a receber nenhuma proibição e nem nada do tipo, e seguiu com novos animes, jogos e cartas sem grandes problemas, além do olhar desconfiado de alguns pais e censuras caseiras. Sem a memória das crianças da época, o caso poderia muito bem ser mais um dos vários delírios coletivos, criados a partir da distorção de lembranças da infância (não, a cobertura jornalística do 11 de setembro não interrompeu Dragon Ball). Felizmente, anos depois, o assunto voltou em pauta na imprensa - pelo próprio Gilberto Barros.
Caçoado por toda uma geração que teve seu passatempo atrapalhado ou interrompido pelo pânico moralista que causou, o apresentador se justificou durante transmissão na TV Leão, seu programa de rádio online. “Eu tive culpa, mas não tanta culpa. As pessoas não entenderam o recado que eu quis dar”, relembra Barros, no mais próximo que consegue de uma justificativa. "Foi tudo de coração, um movimento para melhorar a juventude e as crianças do Brasil."