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Crítica

As Mil e uma Noites | Crítica

Miguel Gomes reage à crise portuguesa em retrato à mão livre

11.11.2015, às 16H52.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H42

Nos filmes do diretor Miguel Gomes, o passado deixa vestígios no presente de forma melancólica; não é por acaso que as festas familiares ou populares em A Cara que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto e Tabu - os três primeiros longas do português - sempre parecem estar no fim, já em clima de ressaca. Em As Mil e uma Noites (2015), seu novo trabalho, essas marcas e essa melancolia adquirem formas diversas.

Depois de exibir o filme de seis horas na íntegra no Festival de Cannes, Gomes dividiu As Mil e uma Noites em partes para o lançamento comercial, e diz que essa forma é mais indicada para assistir à sua versão do impacto causado pelo programa de austeridade fiscal imposto pela União Europeia "que empobreceu todos em Portugal", diz a cartela explicativa que antecede as três partes, de duas horas cada. De fato, é possível perceber que cada uma delas tem um tom que sobressai: a primeira é a mais irônica, como uma primeira reação ao abandono do Estado, a segunda é de uma melancolia mais resignada e a terceira, mais reflexiva, como uma esperança que apesar de tudo se renova.

São como as etapas de um luto, então, que Gomes faz desse seu trabalho o mais direto, no trato das coisas que afligem o povo e a cultura portuguesa hoje. Essa disposição de lidar frontalmente com um tema, de reagir a ele no calor do momento, gera resultados mais e menos exitosos, embora todos sigam a ideia de encarar a crise com o "espírito delirantemente ficcional", como diz Gomes, das histórias orais de Sheherazade para maravilhar o sultão.

Nos seus momentos mais triviais, de postura francamente indignada com o liberalismo, As Mil e uma Noites faz humor com o ridículo fácil dos engravatados do Banco Mundial; nos melhores, extrai do folclórico cotidiano português imagens de uma força de espírito à prova de misérias. Ao mesmo tempo, as experimentações formais também têm resultados díspares; As Mil e uma Noites flerta com o gênero musical com uma leveza e um descompromisso interessantes (ainda mais para o público brasileiro, uma vez que Gomes parece enxergar o país como um terreno de soluções que os portugueses deveriam levar em consideração) mas as intervenções de texto na tela, como as contagens regressivas e o episódio das trocas de SMS, mais tateiam um cinema pós-moderno do que de fato se justificam como recurso.

A impressão mais persistente, ao longo das três partes, é de que Miguel Gomes explorou como podia o rápido prestígio - e o decorrente dinheiro de coprodução continental - que angariou com seus primeiros filmes junto ao circuito de festivais europeus. As Mil e uma Noites se aproveita dessa liberdade, não só na longuíssima duração mas nas experimentações de linguagem, e se isenta da necessidade de depurar seu projeto. Embora os melhores filmes do cineasta saibam tirar da espontaneidade do relato documental a sua força - uma espontaneidade que exige mesmo tempo e negativo para queimar - As Mil e uma Noites está longe de ser a progressão natural, a depuração de um cinema, que os fãs de Gomes talvez esperassem.

Nota do Crítico
Bom