Não é à toa que Beau Tem Medo tem quase três horas de duração. Muito antes de subirem os créditos de verdade, o novo filme de Ari Aster encontra pelo menos dois ou três finais perfeitamente adequados para a epopeia do seu personagem título, vivido por Joaquin Phoenix… e rejeita categoricamente todos eles. O diretor e roteirista de Hereditário e Midsommar, agora em seu terceiro longa-metragem, parece querer recriar um daqueles pesadelos surreais e elaborados que duram a noite toda, divididos em capítulos conectados entre si só pela incidência dos nossos traumas mais arraigados e dos monstros que eles criam em nosso subconsciente.
Na nossa cabeça, esses pesadelos duram para sempre, mesmo porque não é possível de fato escapar da mente que os criou. E seja por cálculo ou por impulso, Aster escolhe sempre negar trégua e redenção para o seu Beau, um homem frustrado e tímido que sai de casa para visitar a mãe e se depara seguidamente com perigos reais e surreais pelo caminho. Nessa narrativa capitular, o cineasta equilibra a chave tonal do filme no quão desconfortavelmente reconhecíveis são os medos que se manifestam ao redor do protagonista, e sua grande aliada nesse sentido é a designer de produção Fiona Crombie (Cruella).
O trabalho dela aqui é criar ambientes facilmente identificáveis para o público contemporâneo e amplificar neles os desajustes que já pressentimos e tememos no dia a dia. É uma tarefa que exige tanto poder de observação quanto uma sutileza finíssima, a fim de “tirar as coisas do lugar” na medida certa para que Beau Tem Medo provoque o riso nervoso do reconhecimento, mas não caia na presunção das sátiras demasiadamente óbvias. Por sorte, Crombie se mostra mais do que à altura do desafio.
A caótica rua do apartamento de Beau surge completa com cadáveres estirados no meio do asfalto e pichações obscenas em cada parede. O quarto de uma garota adolescente é esmeradamente decorado com pôsteres em tons de rosa de sensações musicais teen que não existem, uma super-heroína aqui e ali, uma chapinha vermelha pendurada na gaveta. A mansão assombrosamente moderna, mas impiedosamente fria, de uma executiva milionária é marcada por pedras expostas e escadarias “rústicas”, uma linha do tempo polida de propagandas de sua empresa e uma série de fotos enganosamente felizes de sua família.
Beau Tem Medo passeia pelo medo caótico dos ambientes urbanos, pelo medo suprimido dos ambientes suburbanos, e pelo medo matemático dos ambientes elitizados - também escondido, claro, mas principalmente transformado em arma contra a percepção de fragilidade que é o terror de todo capitalista. Em todos esses ambientes, o filme reproduz clichês arquitetônicos e decorativos com destreza, mas também trata de realçar os seus aspectos hostis à vida tranquila e saudável que, no fundo, é tudo o que o protagonista deseja e tudo o que a trama (e o mundo) parece negar a ele.
Vigilância, violência, a solidão inviolável do indivíduo em um sistema social que rechaça a cooperação e incentiva a competição. Muito além (ou, talvez na raíz) dos mommy issues nos quais tantas críticas de Beau Tem Medo resolveram se concentrar, esses são os vilões do longa, que encara a ansiedade contemporânea de frente e mina dela os risos hesitantes que vão aos poucos apertando o peito e se transformando em horrores palpáveis. Esse é o propósito da caricatura de masculinidade patética de Joaquin Phoenix, da caricatura de crueldade machucada de Patti LuPone (que merece ser vista como candidata ao Oscar de melhor atriz coadjuvante desde já), da caricatura de abuso coagente de Nathan Lane.
No mundo de pesadelo cruel de Aster, seres humanos são um resultado imutável das carências, culpas, ressentimentos e lutos indizíveis pelos quais passaram. Como Hereditário e Midsommar, este seu novo filme fala sobre o que de mais terrível pode acontecer quando seres humanos são incapazes de se comunicar. Ao contrário dos longas anteriores, Beau Tem Medo renuncia ao aspecto atemporal do terror de assombrações e ritos religiosos, e abraça o terror surreal do mundo em pedacinhos pelo qual todos nós vagamos hoje. O incômodo que o filme pode causar, como diria Oscar Wilde, é pouco mais do que “a ira de Calibã vendo o seu próprio rosto no espelho”.
Ou seja: por todos os seus ares de autoralidade sofisticada, Beau não faz nada de tão realmente especial, nada de muito difícil. Mas que funciona… ah, disso não há nenhuma dúvida.