Líder de uma comunidade é perseguido e parte ao sacrifício em nome de suas idéias. Com o martírio e a redenção, vê então crescer o número de arrependidos e seguidores de seus valores morais. A premissa diz respeito, claro, às doze horas finais de Jesus, o calvário revisto em A Paixão de Cristo (The Passion of The Christ, 2004), de Mel Gibson. Mas ela não é um privilégio bíblico.
A Paixão de Cristo
A Paixão de Cristo
A Paixão de Cristo
Só na antologia do próprio ator e diretor, por exemplo, são encontrados pelo menos dois filmes baseados no mesmo princípio do herói martirizado: em Mad Max 2 - A caçada continua (Mad Max 2: The road warrior, 1981) ele vive um ex-policial que coloca a própria pele em risco ao liderar pessoas inocentes contra o abuso de motoqueiros bárbaros; em Coração valente (Braveheart, 1995), literalmente, troca a vida pela liberdade dos escoceses que comandou contra a dominação inglesa no século XIII.
O que tudo isso quer dizer? Que trata-se de um tema universal, vastamente trabalhado na literatura e no cinema. Assim, não parece absurdo propor uma resenha de A Paixão de Cristo (The Passion of The Christ, 2004) sem recorrer às comparações sistemáticas com passagens das Escrituras. Esqueça também a reação das bilheterias, o barulho dos religiosos, a polêmica do pai Hutton Gibson e a influência do Espírito Santo sobre o diretor. Analisar o filme como uma obra fechada e independente do contexto histórico ajuda a evitar algumas dessas armadilhas de interpretação. E ajuda também a identificar algumas de suas fragilidades formais.
Cinquenta minutos
Primeiramente, Gibson confunde senso comum com negligência de informação: o que é de domínio público e o que o roteiro deve nos fornecer para não soar superficial. Fica difícil, por exemplo, para quem não conhece a Virgem Maria, a prostituta Madalena e o evangelista João, saber se Maia Morgenstern, Monica Bellucci e Hristo Jivkov têm alguma importância na trama além da mera figuração. No caso do último, que entra mudo e sai calado, descobrir quem ele interpreta é inviável.
Não é um pormenor. Em qualquer história de mártires, é preciso que entendamos a influência do homem sobre os seus seguidores para que também nos envolvamos emocionalmente com a sua causa. Para isso existem os coadjuvantes, afinal! E por mais que o Cristo vivido por James Caviezel se esforce, a função edificante de A Paixão começa a perder força aí, quando o trabalho dos personagens secundários não vai além do choro interminável.
Pior. Do lado dos malvados, o desempenho é igualmente inconvincente. Se Gibson foi taxado de anti-semita, isso se deve à caricatura extrema que envolve o retrato dos judeus. Nunca fica claro o motivo de tanto ódio por parte dos sacerdotes fariseus, em especial Caifás (Mattia Sbragia), e alguns segundos bastam para demonstrar a maneira enviesada com que a corte de Herodes é caracterizada. Esse maniqueísmo que Gibson insiste em promover impossibilita o realismo que ele diz assumir. Não basta todo mundo falar aramaico. Ainda faltam as necessárias explicações e sobram os clichês.
Evidencia-se, a essa altura, outro grande problema da película: a gratuidade. Sim, a violência é exagerada, explícita, ostensiva por longos cinquenta minutos. É preciso ter estômago forte. Mas vísceras expostas não seriam um problema, se a câmera não focalizasse carrascos lambendo os beiços e esbaforidos de satisfação. Com essas opções duvidosas, A Paixão chega, assim, a flertar também com o sadismo. Coisas que tornam a sessão um suplício para quem não simpatiza, de cara, com a via-crúcis de J.C.
Daria para prosseguir, dizer que Gibson minimiza as lições de amizade, perdão e esperança presentes na Bíblia e prioriza a questão do flagelo. Daria, a partir daí, para levantar uma comparação com os tempos fundamentalistas atuais, quando a religião - qualquer religião - parece ter perdido seu caráter humanista e preservado somente a idéia de devoção cega e sacrifício suicida. Mas este texto se propôs a uma análise formalista. Já é o bastante.