Ao apresentar o seu filme mais recente, Essential Killing, no Festival do Rio, o diretor polonês Jerzy Skolimowski disse que veríamos o resultado de uma tortura a que ele e o ator Vincent Gallo se submeteram: filmar a -35ºC na Noruega, com neve nos joelhos e, no caso do ator, às vezes descalço. Gallo levou o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza - um reconhecimento, acima de tudo, da sua disposição para o sacrifício - e Essential Killing saiu com o prêmio especial do júri.
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O personagem do ator não solta uma palavra ao longo do filme. Sabemos que chama-se Mohammed; é o que dizem os créditos finais. Mohammed estava entocado em uma caverna no Afeganistão quando é capturado pelo exército dos EUA. Com outros talibãs, é interrogado, torturado com waterboarding, e depois conduzido para uma prisão. O idioma de alguns aliados dos EUA dá a entender que estamos em território nórdico ou russo, e é inverno. No meio do comboio, um acidente, uma capotagem, e Mohammed foge.
Da captura à fuga vão menos de meia hora, e o restante do filme acompanha o martírio de Mohammed para não ser recapturado. Martírio, no caso, é uma palavra adequada, já que o árabe vivido por Gallo foi instruído a entregar a sua vida pela causa islâmica (como nos esclarecem alguns flashbacks). O que vemos em Mohammed, porém, não é a confiança divina dos homens-bombas, mas um desesperado apego à sobrevida.
O título do filme diz muito sobre isso. Desde o momento em que foi desentocado no deserto afegão, Mohammed mata não por convicção, mas por necessidade. No gelo norueguês, mata cães e homens como uma espécie de defesa - é o assassinato essencial. Skolimowski não está, com isso, justificando atos de terror. Está, sim, submetendo um homem comum, que não parece ter a menor vocação para a atividade talibã, ou mesmo noção do que é ser um terrorista muçulmano, ao teste da vida real.
Mohammed é como se o Vincent Gallo de Brown Bunny, viajante curvado pelo peso de seu passado, se misturasse ao Rambo do filme de 1982, tentando escapar não só de seus perseguidores mas também de sua má consciência. Skolimowski frequentemente usa som cacofônico para pontuar a confusão mental de seus heróis caídos, e aqui esse recurso se intensifica (não por acaso, Mohammed encontra um mínimo de paz numa mulher muda). O que distingue Essential Killing dos outros trabalhos do diretor - e de qualquer filme-de-fuga - é o uso das cores.
Não que a fórmula seja rigorosamente seguida, mas Skolimowski parece "transformar" Mohammed a cada uma das suas "mortes essenciais". Ele começa com uma túnica árabe, depois usa uniforme laranja de detento, roupa preta, depois branca, vermelha. Os assassinatos de Mohammed e seus visuais constantemente em mudança - e que imediatamente contrastam com a imensidão branca da neve - dão à jornada do personagem uma dramaticidade quase existencial. Com um diretor no controle das intempéries como Skolimowski, Vincent Gallo não precisa mesmo nem dizer uma palavra.