David Dastmalchian em Entrevista com o Demônio (Reprodução)

Filmes

Crítica

Entrevista com o Demônio ganha o jogo na especificidade de suas referências

Ambientação é (quase) tudo em terror engenhoso que pesa o custo do sucesso

04.07.2024, às 08H39.

Não é difícil compreender a trepidação das distribuidoras internacionais diante de um filme tão quintessencialmente americano quanto Entrevista com o Demônio. Apesar do sucesso durante o lançamento nos EUA, e da ansiedade do público de Letterboxd que acompanha o terror independente, a questão de como as referências dos irmãos Cameron e Colin Cairnes (diretores e roteiristas do longa) se traduziriam para o público de outro país era legítima. Grande parte da graça de Entrevista com o Demônio, afinal, está em como ele captura, emula e distorce um tipo de talk show exibido nas madrugadas da TV aberta que (apesar dos esforços de Jô Soares e imitadores) nunca realmente decolou no Brasil, e muito menos nas especificidades de estrutura, apresentação e linguagem que o filme evoca tão brilhantemente.

O programa ficcional retratado no longa se chama Night Owls (“Corujas da Noite”, em tradução livre), e é apresentado por Jack Delroy (David Dastmalchian), que se desdobra para conquistar o público com atrações cada vez mais sensacionalistas com o suceder das temporadas. Entrevista com o Demônio abre em formato de reportagem televisiva, traçando a ascensão e queda de Jack, sua luta para sair da sombra do líder de audiência Johnny Carson (apresentador do The Tonight Show por décadas na vida real), o falecimento de sua esposa Madeleine (Georgina Haig) e a tentativa desesperada de recuperar prestígio com um especial de Halloween onde o apresentador pretende entrevistar uma jovem, Lilly (Ingrid Torelli), possuída pelo diabo.

Durante toda essa abertura, os irmãos Cairnes criam com inteligência absurda um universo ficcional que é crível e envolvente não só por seus acenos muito pontuais à realidade, mas principalmente por seguir as rotas que se tornaram familiares dentro da celebridade televisiva hollywoodiana do século XX (Jack caricaturado em uma capa de revista como um boxeador derrotado por Johnny, Jack em uma foto de paparazzi granulada do enterro de sua esposa), os ritmos próprios do circo midiático que envolvia e ainda envolve - embora com algumas transformações - esta forma de mídia. Quando Entrevista com o Demônio finalmente deságua em uma reprodução completa do fatídico episódio de Night Owls estrelado por Jack e Lilly já compramos o mundo do filme há muito tempo.

O mais bacana, no entanto, é que os Cairnes nunca consideram o jogo ganho. Entrevista com o Demônio mantém a bateria de referências certeiras durante todos os seus 93 minutos, seja no line-up de convidados esotéricos de Jack durante o episódio do talk show ou em suas relações de bastidores com o produtor megalomaníaco (Josh Quong Tart), o assistente de palco medroso (Rhys Auteri, excelente), a ambiciosa escritora que traz Lilly para o palco (Laura Gordon), e por aí vai. Os personagens são todos variações de chavões familiares, e a eloquência do roteiro está em integrá-los a situações que caminham na linha tênue entre o confortável e o incômodo - há sempre um rio subterrâneo de sugestões sinistras e tentações viscerais correndo por baixo da estrutura conservadora do talk show, uma aposta ácida que o filme segura com precisão.

De certa forma, é claro, tudo afunila e está contido na performance poderosa de David Dastmalchian. Ele assume o centro do filme provando, acima de tudo, que merece estar ali após anos relegado a personagens coadjuvantes em Hollywood. O seu Jack é absolutamente magnético nos ritmos de fala perfeitamente modulados em uma gravidade masculina que é reconfortante, mas nunca ameaçadora; no caimento impecável da franja de um lado do rosto, em um combo vencedor com as costeletas exageradas que o tornam charmosamente datado; nos olhares cúmplices para a câmera e nas piadinhas nervosas da televisão ao vivo, entregues com uma ansiedade cansada de quem está acostumado com o risco e a exposição, mas também com o exercício de esconder uma parte de si do público. E, quando a magia da TV se quebra e podemos ver o “verdadeiro Jack”, Dastmalchian transforma essa angústia sublimada em um desespero palpável, que carrega o filme durante um terceiro ato admitidamente mais difícil.

Acontece que a ilusão construída pelas referências de Entrevista com o Demônio é tão eficiente, o incômodo que ele evoca tão real que, quando o filme finalmente chuta o balde e se entrega a um horror mais franco, até de certa forma abstrato, o ajuste de tom é um pouco brusco até para a direção habilidosa dos irmãos Cairnes. Se continuamos acreditando naquilo, se continuamos sentindo pelo protagonista e pelos preços que ele paga por um sucesso que parece ser o único sentido de sua vida, é porque Dastmalchian nunca deixa de ser espetacularmente assistível. No fim das contas, Jack pode nunca ter se tornado um campeão de audiência, mas o seu intérprete certamente merece ser o #1.

Nota do Crítico
Ótimo