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O épico é um gênero de cartas marcadas. Fundamenta-se em lições de moral, situações cerimoniosas, frases de efeito, heróis inquestionáveis e maniqueísmos. Na maioria dos casos lhe é habitual, inclusive, a previsibilidade: os melhores épicos são aqueles de relembram episódios históricos cujo desfecho é de vasto domínio público. Assim, parece equivocado criticar uma obra do gênero por ser pouco inovadora, esquemática e previsível, violenta demais, fantasiosa demais, por ter longas batalhas, amores impossíveis, etc.
Sair à cata desses tipo de argumento é improdutivo, antes de tudo, por negar as próprias regras do gênero.
É bom que haja essa explicação agora, uma vez que a trilogia O Senhor dos anéis fez renascer, cinco décadas depois, a mania hollywoodiana por tais temas. Macedônicos, helênicos, romanos, fariseus, sumérios e toda sorte de antiga civilização belicista aguardam o momento de colocar as suas lendas nas bolsas de apostas do verão do cinema. Todos parecerão iguais, então como diferenciá-los?
Como saber, por exemplo, se Tróia (Troy, 2004) - o filme de Wolfgang Petersen (Força Aérea Um, Mar em fúria) que relembra a guerra entre gregos e troianos pelo controle da cidade-estado nos anos 1100 a.C. - honra o espírito de guerra espartano ou somente segue o modismo? Nessa avaliação, há um conceito a seguir: autenticidade.
Espetáculo visual
E aí o orçamento de 185 milhões de dólares (declarados) não significa muita coisa. O roteiro de David Benioff já sai em desvantagem no quesito fidelidade textual. Acompanhar diálogos em inglês não é problema maior do que aceitar comentários anacrônicos, revestidos de cinismo moderno, numa época marcada por um lirismo empolado. Benioff perde também em abrangência e profundidade. Um recorte de 2h40min não tem como dar conta dos 15.600 caudalosos versos da mais antiga e extensa obra atribuída a Homero, a Ilíada. Para se ter uma idéia do trabalho, o próprio poema já reduz o tema: trata somente dos cinquenta dias cruciais - a vingança de Aquiles e a tomada de Tróia - de uma guerra que durou dez anos!
Assim, por mais que Petersen e Benioff tentem, se desdobrem, o seu Páris (Orlando Bloom) não será mais do que um bobo apaixonado. Helena (Diane Krueger), só uma bela mulher. Ajax (Tyler Mane), um brutamontes. Ulisses (Sean Bean), um papagaio de pirata.
De certa forma, o diretor reconhece que a sua investida tem limitações. E consegue se esquivar desse problema ao criar um espetáculo visual correto, por vezes empolgante, que não compete em pretensão com o clássico mas busca solidificar um épico honesto. Isso Petersen faz com esmero. Sabe empregar os efeitos digitais sem se deslumbrar com o recurso, sabe conduzir a câmera com elegância e, por extensão, pensar planos e ângulos que valorizam as lutas, as paisagens, e não empobrecem os momentos de introspecção.
OToole é o nome
Prudente no seu posto, Petersen lega eventuais audácias ao seu elenco. Aposta em Brad Pitt. De fato, o Aquiles vivido pelo galã não tem dificuldade em transitar entre a beleza de um semideus e a fúria do maior de todos os guerreiros. Mas, de novo, a dimensão do dilema do personagem condenado desde o nascimento a batalhar, tema crucial da Ilíada, não vai além da superfície do roteiro. Tudo parece, portanto, fadado às meras boas intenções. Mas eis que surgem Eric Bana e Peter OToole.
Subestimado em Hulk (de Ang Lee, 2003), Bana mostra aqui, sem retoques digitais, que possui as qualidades de um legítimo ícone de ação. Tem as feições agressivas de um Charlton Heston, de um Stallone, que lhe conferem verossimilhança. Mais postura, presença de cena capaz de preencher toda a tela. Tem também talento suficiente para fazer de seu Heitor - o herdeiro de Tróia que derrama sangue em nome do romance do irmão Páris - o verdadeiro herói do filme.
E Bana tem a sorte de contracenar com OToole, aqui interpretando o pai de Heitor, Príamo, soberano de Tróia. O eterno Lawrence da Arábia dá uma aula: desde a modulação de voz durante os discursos, até o olhar dramático nos momentos de dúvida. Repare como Pitt fica pequeno diante do ator. O septuagenário OToole é sinônimo de épico, e Tróia deve a ele a autenticidade que eventualmente chegue a ostentar.