Anya Taylor-Joy e Thomasin McKenzie em Noite Passada em Soho (Reprodução)

Filmes

Crítica

Noite Passada em Soho é um horror urbano nostálgico - mas anti-nostalgia

Edgar Wright conjuga apelos contraditórios em passeio delicioso, mas aterrorizante, pelos perigos de uma metrópole

16.11.2021, às 17H06.

Sempre houve algo de saudosista no cinema de Edgar Wright. Do resgate e subversão de clichês antigos da trilogia Cornetto até a ação embalada por canções de décadas passadas de Em Ritmo de Fuga, o cineasta sempre fez filmes indiscutivelmente contemporâneos, mas imbuídos com o senso histórico de um admirador de arte bem versado, conhecedor do caminho que nos trouxe até aqui. Nenhum dos longas de Wright, no entanto, vai tão fundo nessa convergência de sensibilidades quanto Noite Passada em Soho - ou se mostra tão consciente dela, aliás.

Antes de qualquer coisa, o filme literaliza esse conflito entre o moderno e o antigo ao contar a história de Eloise (Thomasin McKenzie), uma jovem sensível do interior da Inglaterra, que deixa a casa da avó e se muda para a Londres contemporânea sozinha, a fim de estudar moda em uma prestigiosa universidade. Quando aluga um quarto em uma velha casa no bairro badalado do Soho, no entanto, ela começa a ter sonhos e visões da vida de Sandie (Anya Taylor-Joy), aspirante a cantora que buscou a fama na Londres dos anos 1960, com a ajuda do charmoso Jack (Matt Smith), seu namorado e empresário.

Wright e a corroteirista Krysty Wilson-Cairns (1917) tomam seu tempo para introduzir essa premissa, e ainda mais para tirar da manga as cartas mais surpreendentes de Noite Passada em Soho - não fossem trailers e materiais promocionais, o espectador dificilmente teria noção de que está assistindo a um filme tão profundamente inspirado por clássicos do terror até metade da metragem ou mais. Ao invés disso, o que a dupla faz é nos imergir, aos poucos, no mundo particular de Eloise, e chocá-lo com a realidade que ela encontra quando chega a Londres.

Isso porque, em seu coração, essa é uma história sobre o horror inerente não só à capital inglesa, mas a qualquer metrópole, especialmente se vista pelos olhos de alguém que acaba de chegar nela e precisa encontrar o seu caminho, o seu lugar. A jornada de Eloise é sobre conciliar o sonho e a sedução das luzes brilhantes da cidade grande com a realidade das ruas sujas, das condições de moradia precárias, da solidão essencial de estar em um lugar cheio de gente, mas ninguém realmente se importar com o seu bem-estar. 

Noite Passada em Soho sabe que este é um ambiente inóspito para quase todo tipo de conexão humana, mas fértil para a perpetuação de injustiças e opressões que se eternizam pelos anos diante da impotência que cada indivíduo sente diante delas. O filme é brilhante em fazer sentir essa desconexão, essa crueldade, e em desmontar a nostalgia da protagonista (talvez também a do público, e a do próprio cineasta) por uma década passada que, no fim das contas, era diferente da nossa apenas por suas qualidades superficiais.

Wright sendo Wright, tudo isso acontece em meio a uma deliciosa estilização cinematográfica. O design de som de Noite Passada em Soho é uma obra de arte por si só, com as canções escolhidas pelo diretor se misturando a ruídos ampliados e à trilha incidental melodramática de Steven Price, que hora evoca os terrores giallo dos anos 1970 (assim como a fotografia, com o seu uso desavergonhado de luzes neon), hora lembra os thrillers cheios de excessos que Hollywood produzia nos anos 1990 - quase um suspense camp de Joel Schumacher, no melhor dos sentidos possível.

O que o cineasta e sua equipe fazem, no entanto, é se certificar que o ferrão emocional de Noite Passada em Soho seja sentido mesmo nos momentos de maior satisfação estética do filme. Então, sim: Anya Taylor-Joy está hipnotizante em seu vestido rosa esvoaçante, que deve entrar para o rol dos grandes looks da história de Hollywood, mas a atriz também expressa de forma genial o profundo artifício da confiança que Sandie projeta, sua fundamental fragilidade, e seu eventual cinismo machucado.

E, sim: Thomasin McKenzie prova ser uma excelente “scream queen”, marcando expressões de choque indeléveis na tela por baixo da maquiagem exagerada e das luzes coloridas de Wright e do cinematógrafo Chung Chung-hoon. Ela também é, com toda a elasticidade emocional que já demonstrou em filmes como Jojo Rabbit e Tempo, o núcleo sólido no qual o filme pendura toda a sua angústia, o seu desgosto com o mundo que busca pintar, em cores tão vivas, na tela.

Um deleite cinematográfico, pulsando em ritmo e referencialidade, e um manifesto amargo de desajustes sociais incuráveis, Noite Passada em Soho é uma das obras mais contraditórias do ano. Só um grande artista, ou um time de grandes artistas, seria capaz de segurá-lo na ponta dos dedos como Wright e seus colaboradores fazem aqui.

Nota do Crítico
Excelente!