É quase contraditório. Graças a uma gigante do capitalismo como a Nike é que existem obras artesanais como Coraline e O Mundo Secreto e ParaNorman. Phil Knight, cofundador e maior acionista da toda poderosa empresa esportiva é também o dono do estúdio de animação Laika, que tem seu filho, Travis, como presidente.
Essa relação de mecenato (e nepotismo) explica como o estúdio se mantém em pé e livre para fazer as suas escolhas. Ainda que tenha encontrado uma linguagem própria pela técnica do stop-motion, assim como a Pixar o fez com a computação gráfica, os filmes da Laika não atingiram o mesmo equilíbrio entre crítica e público. Elogiadas e com indicações ao Oscar, suas duas animações não chegaram a ser grandes sucessos de bilheteria.
Assim, Os Boxtrolls, terceiro longa-metragem animado do estúdio, nasce de uma liberdade que só é possível nesse contexto de patrocínio "desinteressado". O filme não deixa de ser um produto, que será vendido por distribuidoras e afins, mas seu compromisso inicial é com a sua excelência artística. Daí o nível técnico de detalhes e mesmo de cinismo narrativo da animação dirigida por Graham Annable e Anthony Stacchi.
Das histórias de Alan Snow em A Gente é Monstro! surgiu a trama sobre um menino criado por estranhos trolls que se vestem com caixas e são batizados por suas embalagens (Peixe, Chulé, Picles...). Os monstrinhos simpáticos que dão nome ao filme poderiam facilmente ter tomado o exemplo dos Minions, dominando a trama e transformando o longa em uma colagem de pequenos curtas cômicos. Os Boxtrolls, porém, são apenas o fio condutor de uma narrativa complexa que envolve luta de classes e pais mais interessados em futilidades do que nos próprios filhos.
O vilão, Arquibaldo Penélope Surrupião, é o principal exemplo desse nível de sofisticação da trama. Responsável por demonizar os Boxtrolls, acusando-os do rapto do bebê Trubshaw, ele usa seu papel como exterminador de pragas da cidade para chegar a uma selecionada mesa de degustação de queijos. Apesar de ser alérgico a iguaria, tudo o que ele quer é ser reconhecido pela mesma sociedade que o rejeita, trocar o seu surrado chapéu vermelho por um belo chapéu branco. O que impressiona aqui é a consciência que o vilão tem de si e dos seus absurdos, chegando a um desfecho sem punições cristãs ou lições moralizantes. As crianças, Ovo e Winnie, assim como os capangas de Surrupião, são personagens igualmente bem construídos, com toques de ironia, humor sombrio e questões existenciais.
Essa complexidade social se encaixa perfeitamente no já reconhecido esmero técnico da Laika. O figurino de Surrupião, por exemplo, mostra uma tentativa de pompa em trajes velhos e, graças ao stop-motion, é quase possível sentir o toque gasto do veludo do seu casaco (o que é ressaltado pela exibição em 3D). A fluidez dos movimentos, tanto dos personagens como da câmera, consegue uma harmonia entre a técnica manual e a computação gráfica, sem em nenhum momento parecer artificial. Tudo amarrado pelo controle da luz e das cores em um universo vitoriano ricamente construído.
Os Boxtrolls entra na categoria “para agradar crianças e adultos” e cumpre esse papel com ousadia e elegância. Um bom exemplo de que o cinema precisa de mais mecenas (ainda que oriundos de corporações questionáveis) e menos produtores com visão industrial.