O comentarista de portal que acredita conhecer tudo da guerra porque já jogou incontáveis Call of Duty agora tem um filme para representá-lo. As escolhas formais de Sam Mendes para 1917, que colam planos longos para emular o fluxo angustiado do um único plano-sequência, têm mais a ver com a dinâmica dos games de tiro do que com a ideia de recontar a Primeira Guerra Mundial de uma perspectiva épica intimista.
Isso faz sentido dentro do panorama do cinema de ação atual, afinal cinema e games se aproximam cada vez mais como linguagem e se misturam nos gostos e no imaginário de quem os consome. De certa forma Mendes está oferecendo uma evolução da guerra espetacularizada que Steven Spielberg definiu na virada do século, e 1917 - enquanto aposta de mercado dentro do nicho específico do cinema de prestígio, "importante" - não deixa de ser uma reação a essas produções.
Como aumentar as apostas em relação a um filme como O Resgate do Soldado Ryan, que aliás já tinha um plano-sequência de abertura como cartão de visitas? Partir logo para o registro integral em plano-sequência é a via previsível, porque, mais do que oferecer uma ferramenta dramática justificada, o que o plano-sequência implica é o desafio técnico, o exibicionismo.
São vários planos longos interligados com transições quase imperceptíveis, ao longo de duas horas, para recontar a jornada de dois oficiais britânicos em campo inimigo, encarregados de entregar uma carta na linha de frente que salvará milhares de vida em batalha. O intuito é obviamente o mais nobre, suas implicações são emocionais (um dos oficiais tem um irmão entre os combatentes em risco), mas a narrativa de 1917 nunca transcende a demonstração de arrojo de câmera.
Numa narrativa decupada tradicionalmente, com plano e contraplano, o mais básico da linguagem, a mudança de câmera objetiva para câmera subjetiva ajuda o filme a transitar sem ruídos entre o que vemos e o que o personagem vê. Se essa dinâmica é revista numa lógica de plano-sequência, a transição deixa de ser suave; sempre haverá um movimento de câmera mais solene para fazer essa mudança. Um exemplo é a cena da queda do avião, em que a câmera começa sobre os ombros dos atores, depois os ultrapassa para dar a perspectiva subjetiva da queda, e novamente recua ultrapassando os atores na corrida para voltar à perspectiva objetiva.
Isso tem um primeiro efeito, óbvio, de espetacularizar tudo o que é encenado em 1917, o que torna tão chamativas as cenas de ação e faz parecer que elas têm a marca da excepcionalidade. O segundo efeito, porém, que impregna todo o filme, é o de nos distanciar de tudo e afinal transformar 1917 numa experiência maquinal de sadismo: tudo o que os dois oficiais protagonistas fazem é reagir às provações, superá-las, porque mesmo quando a câmera adere à perspectiva subjetiva (o olhar do personagem) ela nunca deixa de ser, no plano-sequência, uma extensão do olhar objetivo, analítico e alheio. Essas escolhas desumanizam os personagens, tornados bonecos vazios sem agência num corre-corre controlado por alguém de fora.
Cabe ao espectador fazer o papel de testemunha ocular da tortura, uma vez que sequer tem o controle nas mãos. O parentesco com os shooters de guerra percorre outros aspectos de 1917, desde a narrativa que vai alternando mapas (e às vezes a câmera recua, como em God of War, quando precisa mostrar a magnitude do mapa para contextualizar espacialmente o jogador-espectador) até as participações especiais de astros do cinema inglês em cenas-vinhetas de respiro que funcionam como cinematics de game. A regra nessas cenas também é a do exibicionismo: cabem a Mark Strong ou Benedict Cumberbatch pouco mais do que algumas frases de efeito sobre a desolação da guerra.
O distanciamento e o fetiche de Mendes pelo épico prestam um desserviço à memória da Primeira Guerra Mundial, porque dos conflitos do século 20 este é o que mais se fez no horroroso corpo a corpo, com combates resolvidos não na força da munição mas no corte das baionetas. É comum ver relatos de sobreviventes que lembram dos olhares dos seus inimigos, do horror em primeira pessoa; pois 1917 não apenas recusa qualquer protagonismo do inimigo como também elimina seus olhares. É um filme em crise de visão, de empatia.
Há experiências relativamente recentes no cinema de guerra que justificam o plano-sequência e a escolha de acompanhar muito de perto um único protagonista. Um deles é O Filho de Saul, um filme bastante discutível moralmente mas que pelo menos sabe o que está sonegando ao eleger informações dentro e fora do quadro. Outro, mais bem sucedido, é O Dia do Perdão, de Amos Gitai, que reconta a Guerra do Yom Kippur do ponto de vista de soldados metidos em funções e posições básicas, e que vivem na pele a insensatez da guerra porque essas pequenas funções se perdem em si. Há um plano-sequência muito forte no filme, quando o soldado atola na lama e não consegue sair; a força dessa cena reside muito na duração do plano - justamente porque é uma escolha excepcional e não a regra.
No Oscar 2020, precisamos nos contentar com o favoritismo de 1917, o que diz muito sobre como as guerras se banalizaram de modo geral e parecem se justificar em função de um instinto nosso fetichista e autodestrutivo. O ideal seria, na verdade, que Jojo Rabbit e 1917 se fundissem e virassem um único longa-metragem, em que o amigo gordinho de Jojo corre pelo campo de batalha, um plano-sequência de brincadeira num parquinho de areia, abraçando surpreso as celebridades do cinema inglês. Seria uma experiência mais honesta com tudo o que 1917 se dispõe a dar ao mundo.
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