Mia Goth em cena de Pearl (Reprodução)

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Crítica

Pearl simplifica brincadeira estético-narrativa de X com bons e maus resultados

Segundo longa da franquia virou meme no Twitter cinéfilo porque foi feito para isso

08.02.2023, às 14H43.

Pode-se acusar o diretor Ti West de muita coisa, mas não de ignorância sobre a própria arte. Desde que surgiu no cenário cinematográfico com A Casa do Diabo, lá em 2009, o americano tem construído uma filmografia alicerçada em seu conhecimento morfológico do cinema de gênero. Seja no thriller de pânico satânico, no filme de casa mal-assombrada (Hotel da Morte, 2011), no horror found footage religioso (O Último Sacramento, 2013) ou no faroeste ultraviolento (No Vale da Violência, 2016), West mostra conhecer e saber replicar, com extraordinária precisão, as técnicas e movimentos narrativos que construíram o apelo de cada tipo de filme com o passar das décadas.

De fato, o pecado solitário de muitas de suas obras é justamente a dedicação irrestrita à replicação estética, em detrimento do desenvolvimento narrativo que deve fazer parte até do produto pop mais direto de Hollywood. Fazer referência ao estilo sem construir em cima das histórias que ele tem sido usado para contar é um exercício pop incompleto - e é justamente aí que X: A Marca da Morte se mostrou um divisor de águas na carreira de West. Nas convenções do slasher e na colaboração com Mia Goth, o diretor finalmente encontrou uma forma de arrancar vitalidade de seu cinema de reproduções veneratórias.

Trata-se, afinal, de um filme sobre a liberação e a escravização do corpo feminino diante das câmeras, sobre a crueldade do tempo em uma cultura de idealização da juventude, sobre como o conservadorismo e o progressismo se confundem psicologicamente quando confrontados com o dilema do sexo, sobre as marcas sociais deixadas tanto pela culpa religiosa quanto pelo hedonismo laico na vivência feminina. Tudo isso dentro de um horror rural-erótico-musical de bom humor latente e consciência aguda de como construir imagens emblemáticas dentro do repertório do slasher - mistura explosiva, original e brilhante.

Pearl herda esse peso temático do seu antecessor, mas lida com ele de forma muito menos sutil. Aqui, West e Goth (agora também corroteirista) voltam no tempo para explorar a juventude da personagem-título, vista como uma octogenária assassina em X. Presa na fazenda da família por sua mãe amarga e controladora (Tandi Wright), Pearl sonha com o estrelato hollywoodiano, mas vai precisar lutar contra sua família, seu pretendente fajuto (David Corenswet) e seus próprios instintos assassinos para poder comparecer ao teste de elenco realizado por um estúdio de cinema em sua cidadezinha.

Ao abordar essa história de origem perturbadora, West escolhe o caminho da desconstrução dos clichês campestres americanos, estabelecidos primariamente pelos musicais caprichosos da Hollywood clássica. Repetindo a parceria de X com o diretor de fotografia Eliot Rockett, o cineasta filma as plantações de milho e longos campos verdejantes do interior estadunidense com cores saturadas, escolhendo em muitos momentos a grandiosidade contemplativa de um take distanciado dos personagens - é uma inversão de O Mágico de Oz, que famosamente registrou o Kansas de Dorothy em tons sépias enquanto reservou o Technicolor para o mundo de fantasia que ela visitava na trama.

Ao mesmo tempo, Pearl procura planos fechados quando se aproxima do horror, enquadrando de forma mais direta a deterioração da protagonista diante do esfarelamento de seus sonhos, ou mesmo os delírios perturbados que ela tem durante a primeira metade da trama. Se X nunca sentia a necessidade de abandonar a brincadeira pop para tecer seus dilemas dramáticos, este prelúdio adota quase integralmente a linguagem do drama de prestígio quando acredita que chegou a hora de “falar sério” - o já famoso monólogo de Goth no terceiro ato sendo o exemplo mais óbvio, embora nem de longe o único, dessa mudança de chave tonal durante o filme.

Não é que a ambição dramática de Pearl fique sem resultados. Impressiona a virtuosidade pura da performance de Goth, minuciosa e expressiva tanto no tal monólogo quanto em todo o crescendo de frustração que é o arco da protagonista. Enquanto isso, com a voz feminina mais estabelecida dentro do processo criativo, a franquia começada em X ganha contornos temáticos firmes, elaborando de forma consideravelmente mais desenvolta as amarras sociais colocadas nas mulheres que povoam o seu mundo, e a forma como elas se perpetuam caleidoscopicamente, sem deixar ninguém se refugiar na inocência - o sistema corrompe, e transforma em instrumento, até quem deveria ser aliado da liberação.

O que o filme faz, no entanto, é martelar os seus pontos de forma muito mais convencional. Fica óbvio, ao fim de Pearl, o porquê do filme ter ressoado tanto com certa parcela cinéfila do Twitter, que não estendeu o mesmo tapete vermelho para X: ele localiza com muito mais cinismo as suas referências, empregando uma precisão que pode parecer louvável, mas é também empobrecedora (é muito mais fácil emular um filme do que um gênero); e ainda se dá ao trabalho de sinalizar ao espectador, em alto e bom som, onde a brincadeira estética termina e a “narrativa séria” começa.

Não surpreende, portanto, que o filme tenha sido adotado tão efusivamente por um público tão apegado ao academicismo - e que tem alimentado com tanto entusiasmo, nos últimos anos, a falácia do “horror elevado”. Falta a Pearl, assim como falta a esse público, fé no valor intrínseco do cinema de gênero, do horror pop que tem levantado debates sociais e evoluído a linguagem cinematográfica desde que ela foi inventada.

Nota do Crítico
Bom