Quando Quo Vadis, Aida?, filme de Jasmila Zbanic, abre focado na tradutora titular tentando mediar uma negociação entre um político bósnio e um militar estadunidense, não é preciso entender as palavras ditas para saber que muito está em jogo. Entre suor e cigarros, o político se exalta, perde a paciência e praticamente implora por ajuda, dependendo da tradução da interpretação de Aida (Jasna Djuricic) para suavizar todo esse desespero. O longa, que narra as últimas horas do massacre de Srebrenica, desde o início estabelece essas figuras tão distintas: o medo desolador das futuras vítimas, e a impessoalidade daqueles que dizem oferecer ajuda.
Indicado na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar 2021, o filme mergulha a fundo num dos capítulos mais sangrentos e injustos da guerra civil iugoslava, conflito entre nações do Leste Europeu, que ocorreu de 1991 até 2001. Na ocasião, a Bósnia e Herzegovina sofria de impiedosos ataques da Sérvia, cujas tropas e milícias tocavam um genocídio étnico após a Bósnia proclamar independência da antiga Iugoslávia em 1992, ato que foi reconhecido pelas Nações Unidas. O longa é ambientado em 1995, na pequena cidade de Srebrenica, que está prestes a ser invadida pelas tropas sérvias.
Mesmo tratando de um período complexo, o filme não pede conhecimento prévio dos eventos, já que se apega ao drama humano da desesperança e da luta mesmo quando tudo está perdido. Aida atua como tradutora em um campo de refugiados da ONU, sempre correndo de um lado para o outro na tentativa de ajudar soldados e médicos a lidar com os feridos e desolados pela guerra. A situação fica mais delicada quando a cidade é tomada e os cidadãos são forçados a deixar seus lares, e o lugar rapidamente se vê cercado por famílias, crianças e idosos buscando abrigo. Para Aida, tudo fica ainda pior quando descobre que seu marido e seus filhos estão entre a multidão.
Quo Vadis, Aida? não dá um minuto de descanso ao espectador. De sua intensa cena de abertura até seu trágico final, de partir o coração, há pouco espaço para respirar. Esse ritmo frenético aumenta o impacto de seu argumento. Aida corre de um lado para o outro, em busca de sua família e de ajudar os outros, mas as tropas estrangeiras parecem não fazer nada o dia todo. É deliberada a escolha de ter a suposta ajuda humanitária como um grupo infantilizado, de soldados incapazes ou então excessivamente burocráticos. Há algo verdadeiramente errado quando em diversos momentos o exército sérvio, capaz de cometer atrocidades imperdoáveis, se mostra mais humano do que os ditos aliados.
Esse descaso gradualmente vira frieza. De início, a ONU garante que a cidade está protegida. Aos poucos, por conta de acordos mal firmados e má vontade, a organização se torna mais e mais permissiva às investidas dos sérvios, tendo ligação direta no ato que, eventualmente, tomaria a vida de quase 9 mil mulçumanos bósnios. Saber o desfecho sangrento do acontecimento histórico não estraga a experiência. Muito pelo contrário, aumenta a tensão, a impaciência e a revolta no espectador, tanto pelo fracasso da intervenção humanitária, ou então pela constante barreira de linguagem que dificulta a comunicação entre todos.
Lançado no 25º aniversário do massacre, Quo Vadis, Aida? serve para lembrar que algumas cicatrizes nunca vão sarar, e também como protesto. Nascida a partir de um esforço coletivo de nove países europeus, a produção é uma enorme crítica à organização que demorou quase uma década para reconhecer sua responsabilidade na tragédia. É um filme construído em cima de um trauma geracional, de crimes que passam impunes e arruinam vidas, famílias e cidades para sempre. Ao mesmo tempo, não há um pingo de ódio na direção frenética ou na escrita impiedosa de Jasmila Zbanic. Apenas indignação, pela falta de humanidade, e pela falta de reparação histórica.