Filmes

Crítica

Sensibilidade católica dá a Som da Liberdade seu diferencial

Jim Caviezel rememora com choro e desconcerto seus dias de messianismo

21.09.2023, às 16H03.
Atualizada em 26.09.2023, ÀS 15H04

Tanto no pré quanto no pós, primeiro na sua estratégia politizada de lançamento, depois nas acusações envolvendo Tim Ballard, tudo que cerca o filme Som da Liberdade faz chamar a atenção para si. Talvez isso permita analisar mais de perto, sob um escrutínio mais atento, como o longa estrelado por Jim Caviezel articula sua peculiar visão de mundo - o que de outro modo provavelmente passaria batido para o espectador médio dos streamings e do cinema.

Passaria batido porque Som da Liberdade não tem muita coisa, a título de valor de produção, que possa merecer os holofotes. A trama sobre um agente federal americano (Caviezel) que decide com as próprias mãos desfazer injustiças em terra estrangeira não se difere muito das dezenas de filmes que consumimos há décadas nessa combinação de propaganda militar intervencionista com narrativa de salvador branco. A rigor, o que Som da Liberdade tem a oferecer é o barulho extrafilme e seus factoides (e um ou outro apito de cachorro).

Porém as particularidades não demoram a despontar em cena. A primeira delas é que a alegoria do salvador branco é quase literal: Caviezel vive uma versão ficcionalizada de Tim Ballard e logo o protagonista descobre que uma das crianças hondurenhas que ele resgata do tráfico internacional de menores tem uma medalhinha de São Timóteo, e a partir desse ponto Tim passa a ser chamado em espanhol de Timotéo no filme. Os dias de Jim Caviezel como Jesus em A Paixão de Cristo, o auge de sua carreira, há quase uma década, continuam rendendo em matéria de messianismo.

Essa codificação católica de Som da Liberdade é o que acaba diferenciando o filme dos seus pares de gênero. Numa leitura religiosa, é possível dizer que a história bélica padrão de justiçamento tem raiz protestante: trata-se sempre de colocar a decisão nas mãos dos homens virtuosos e devolver a ordem a um mundo sem Deus, e colher os triunfos merecidos (econômicos, políticos, militares) desse destino manifesto. Como Som da Liberdade envereda por um caminho católico, há menos recompensas. Jim Caviezel chora três vezes no filme; em uma delas ele limpa o rosto com vigor num gesto raivoso de penitência. Como Cristo, Tim Ballard é um homem que sente por todos.

É muito curioso acompanhar como o filme do diretor mexicano Alejandro Gómez Monteverde lida com lugares-comuns cinematográficos a partir do momento em que escolhe filtrar tudo pela sensibilidade cristã. Por exemplo, em certo momento o agente obviamente entregará seu distintivo ao superior para então cumprir a jornada individualista do heroísmo. Todos os thrillers tratam essa cena como um protocolo, não importa a intensidade com que o cara bate o distintivo na mesa e fecha a porta da delegacia. Já em Som da Liberdade, os personagens dizem que “a lei é a lei” com um sabor amargo diferente, não só com indignação mas também com uma certa perplexidade, porque aqui trata-se de olhar o mundo com desconcerto - esse mundo das “crianças de Deus” que vem sendo maculado pelo homem desde os dias da maçã do Éden.

Essa hipersensibilização da jornada dá ao filme toda a energia que ele é capaz de acumular a partir do desconcerto do mundo. Por meio dela, Monteverde consegue oxigenar esses chavões do thriller de guerra para além das suas óbvias limitações. Que Som da Liberdade não seja capaz de entregar as catarses esperadas de um filme B desse tipo - há uma dose de revanchismo mas não espere muitas perseguições, tiroteios, pancadarias ou explosões enquanto Timotéo cumpre seu sofrido chamado - acaba sendo menos a expressão de uma limitação orçamentária e artística, portanto, do que uma escolha consciente de restrição. Trata-se, afinal, de um filme de missionários disfarçados de soldados, refazendo nas selvas da América do Sul o trajeto dos jesuítas, e a sua missão divina não é de guerra, e sim uma missão de paz.

Nota do Crítico
Bom