Dizem por aí que brasileiro é que nem barata: está em todo lugar - mas, se vocês me permitem uma adição contemporânea à sabedoria popular, o brasileiro está principalmente no Twitter. Talvez isso ajude a explicar por que, sempre que a atriz britânica Mia Goth aparece em um tapete vermelho, está prestes a lançar um novo filme ou dá alguma entrevista, o nome que aparece no ranking de tópicos mais comentados da rede social não é o dela, e sim o de Maria Gladys.
No ano passado, enquanto promovia o lançamento do terror Pearl, Goth foi perguntada pela Cultured Magazine sobre a atriz que mais a inspira na carreira. Não deu outra: a estrela hollywoodiana citou “sua vovó”, Gladys. “Ela teve uma vida incrível, passou por muita coisa e sempre me encorajou a expandir meu universo ao máximo. Acho ela é incrível”, comentou Goth, invocando imediatamente o tuiteiro brasileiro, que a eternizou desde então como “a neta da atriz brasileira Maria Gladys”.
Explica-se: Mia (nome completo, Mia Gypsy Mello da Silva Goth) é filha de Rachel Goth, que por sua vez é filha de Maria Gladys, ícone do cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 - e da TV brasileira nas décadas que se seguiram. Mia passou boa parte da infância no Brasil com a família da mãe (não faltam evidências fotográficas disso), e fala um português de primeira até hoje. O meme se tornou tão predominante que até a Universal resolveu se apoiar nele para um teaser nacional do novo MaXXXine.
Maria Gladys, é claro, é muito mais do que “só” a avó de Mia Goth. Natural do Rio de Janeiro, a atriz é presença marcante da cultura brasileira desde meados dos anos 1950, quando apareceu como dançarina no programa de rock de Carlos Imperial e entrou numa turminha de artistas que ainda incluía Roberto Carlos - reza a lenda, inclusive, que Gladys foi quem tirou a virgindade do Rei.
Nos anos 60, se apaixonou pelo teatro e mais tarde se tornou a musa de diretores importantes do cinema nacional, especialmente da era conhecida como Cinema Marginal. Domingos de Oliveira a dirigiu em Todas as Mulheres do Mundo (1966) e Edu Coração de Ouro (1968); Ruy Guerra a colocou no clássico Os Fuzis (1964), que venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim; com Júlio Bressane, ela fez O Anjo Nasceu (1969), Cuidado Madame (1970), O Gigante da América (1980) e Brás Cubas (1986); Neville D’Almeida a colocou em Rio Babilônia (1982) e Matou a Família e Foi ao Cinema (1991); Rogério Sganzerla foi seu parceiro em Sem Essa, Aranha (1970); e Hugo Carvana a dirigiu em Bar Esperança (1983), Apolônio Brasil (2003) e Casa da Mãe Joana (2008).
Um dos currículos mais absurdos da história do cinema brasileiro, sem dúvida, mas foi também na TV que Gladys encontrou um nicho para chamar de seu: a partir do sucesso da Lucimar da novela Vale Tudo (1988), ela se tornou figurinha carimbada das produções da Globo, e frequentemente interpretando empregadas ou faxineiras. Esteve em Top Model (1989), Fera Ferida (1993), Hilda Furacão (1998), Um Anjo Caiu do Céu (2001), O Beijo do Vampiro (2002), Beleza Pura (2008) e Pé na Cova (2016). “Faço sempre papel de pobre. O dia em que fizer papel de rica na TV Globo, o mundo mudou”, brincou ela à Quem em 2012. “Fiz muita empregada, e gosto muito mesmo das empregadas que fiz”.
Durante essas décadas, em paralelo à imagem de musa do cinema e favorita do “povão” nas novelas, Gladys construiu uma reputação pessoal de transgressora. Nos anos 1960 e 1970, fez oposição ferrenha à ditadura militar, se exilou em Londres (onde teve Rachel, a mãe de Mia Goth) e - de acordo com ela mesma - experimentou todo tipo de droga. “Tomei muito ácido, mas teve uma hora que parei, não quis mais. Cocaína eu cheirei também, mas quem não cheirou nos anos 80?”, comentou à Quem.
E, apesar do sucesso (o seu e o da neta), Gladys desmistifica a ideia de que o artista faz parte da elite. Já declarou que mora de aluguel, disse que só tem plano de saúde quando está trabalhando na TV, e comentou que - aos 84 anos - não consegue se aposentar por nunca ter contribuído com a previdência social.
“Sempre fui dura. A única coisa que sustenta ator hoje é a televisão, ou uma peça que fique três anos em cartaz”, declarou a atriz. “Mas sou feliz com a minha vida, jamais tive algum tipo de rancor. Fui rodeada de pessoas extraordinárias, e isso fez minha cabeça para ser quem eu sou”.