Quando a animação de Chainsaw Man foi anunciada, memes relacionados a uma infame tradução de fãs tomaram conta das redes sociais no Brasil. Citações de frases como “o futuro é pica”, uma das usadas na versão feita por fãs, marcou presença em praticamente todas as discussões sobre a série no Brasil. Mesmo tendo servido até para a divulgação da produção, a polêmica envolvendo o mangá de Tatsuki Fujimoto se apequenou diante da animação. A primeira temporada do anime entrega momentos grandiosos tanto na ação quanto na comédia, mas é no drama que os episódios se destacam, trazendo cenas onde a tristeza aperta o coração dos fãs.
O início da trama apresenta a triste história do protagonista Denji. Órfão muito jovem, ele se vê obrigado a assumir uma dívida gigantesca deixada pelo pai na máfia japonesa. A única escolha de Denji é pagar, do contrário sofrerá uma morte terrível. É nesse momento que ele encontra Pochita, o demônio da motosserra, gravemente ferido. O protagonista então firma um contrato com o pequeno diabo: seu sangue em troca de uma parceria entre os dois. Mesmo com a ajuda de Pochita para ganhar alguns trocados, a malícia da Yakuza o prende na miséria, até que, um dia, Denji é traído e morre. Em seus últimos momentos de consciência, ele faz um novo contrato com Pochita e renasce como o Homem-Motosserra — um humano com coração de demônio que logo é recrutado para o esquadrão de caçadores de demônios pela líder Makima.
Abandonado na frieza do capitalismo tardio, Denji cresce sem ter contato os mínimos prazeres da sociedade pós-moderna, como uma refeição completa, um banho quente ou uma paixão da adolescência. Por causa disso, o personagem ordinário idealiza como vida ideal coisas que poderíamos considerar banais, como comer pão com geleia, dormir em uma cama confortável e tocar no peito de uma mulher. Por mais risíveis que sejam os objetivos iniciais do protagonista, resumir a temporada a isso não seria honesto, ainda mais quando o anime logo dispensa essas trivialidades, mostrando que tudo aquilo fazia parte apenas da apresentação dos seus personagens.
É curioso ver ainda os paralelos da vida de Denji antes e depois de se livrar da máfia. Se conhecemos ele vivendo de bicos análogos à escravidão, ele passa a ter um salário, folgas remuneradas e até sindicato — fato comemorado por ele no mangá. Enquanto ele vivia com uma fatia de pão de forma por dia para ele e Pochita, ele agora come quantos pães e quanta geleia quiser. E se a falta de relações românticas o assombrava, ele sai da primeira temporada com muito mais que isso.
Em poucos episódios, Chainsaw Man amadurece e traz novas discussões incômodas para a sociedade pós-moderna, especialmente a do Japão. Por mais irreais que os demônios de seu universo possam ser, Fujimoto dá explicações muito interessantes para a existência deles, num tom quase poético. Quanto mais medo coletivo se tem de algo, maior será a probabilidade desse medo virar um demônio — e, quanto maior for esse medo, mais poderosa a criatura será. Com isso, a obra introduz o Demônio da Arma, o principal alvo dos caçadores de demônio. Representando a resistência do país às armas de fogo, o vilão se torna o novo objetivo de Denji, que já não foca suas metas apenas em qualidade de vida e mulheres.
Mas mesmo com tantas camadas, é na interação dos personagens principais que a primeira temporada do anime de destaca. A vida cotidiana de Denji com a imprevisível e mal-educada Power e o sério Aki é um espetáculo a parte, sem perder em nada para as longas sequências de ação do anime. O trio não forma um triângulo amoroso e por isso tem mais chances de entregar cenas icônicas, como o primeiro dia de Power morando com os dois ou a interação deles no arco do hotel infinito.
O humor juvenil da animação ameniza os momentos gore e as tentativas do anime de surfar no horror corporal. A obra se esforça para equilibrar seus tons, mirando em manter seu público já cativo do mangá e agregar novos devotos. Muitas vezes, como no mangá, temos humor até em momentos que normalmente seriam sérios ou desconfortáveis. Devido a isso, não é estranho por vezes sentir um sabor de bom e velho cinema slasher entre uma cena mais macabra e outra.
Quando o assunto é a animação, o estúdio Mappa entrega o trabalho com a qualidade já esperada pelo público. Apesar de não revolucionar o conceito de animação e por vezes patinar no 3D, a primeira temporada tem êxito no quesito, que mesmo sem ser seu ponto mais forte, também não é o que a desabona. Tanto nas sequências de luta quanto em momentos triviais, como quando Denji se atira para salvar uma cenoura descartada por Power, temos cenas bonitas de se ver.
Com isso, Chainsaw Man se consagra em poucos meses como um dos animes de ação mais importantes de sua geração. A temporada, que mescla um humor assertivo e momentos de horror e tristeza, faz jus ao hype criado em torno de si nos meses que a antecederam, alimentando as expectativas dos fãs. E, ao trazer uma excelente apresentação de universo e personagens, e uma curiosa conexão entre o protagonista e seu grande objetivo, o mangaká Tatsuki Fujimoto mostra seu domínio do kishotenketsu (estrutura narrativa dos mangás) e uma criatividade que leva sua obra para além do clichê dos shonens de lutinha. Sendo assim, se antes o mangá havia furado a bolha otaku por algo negativo, a animação supera o trauma e atinge novos públicos por sua qualidade.