Em “What If…?”, talvez a faixa mais marcante do Jack in the Box, J-Hope faz um desafio aberto e audacioso à persona que ele mesmo construiu durante os oito anos desde sua estreia na indústria do k-pop, como integrante do BTS. “E se eu não tiver dinheiro?/ E se eu não tiver uma casa?/ E se eu não tiver um carro?/ E se eu não tiver nada?/ Ainda consigo fazer essa m*rda?”, pergunta ele sobre a sua própria reputação de otimismo, que levou ARMYs ao redor do mundo a apelidá-lo de “solzinho” do grupo.
É um dos vários momentos do disco em que J-Hope confronta uma realidade cada vez mais difícil de conciliar com esse otimismo. Em “STOP”, ele descreve como assiste ao noticiário e se pergunta se as barbaridades que passam pela tela foram cometidas por pessoas que “podem se considerar humanas”. À beira do abismo, esse J-Hope se obriga a simpatizar com as circunstâncias nas quais essas pessoas vivem, a fim de continuar acreditando no mote que serve de subtítulo para a canção: “There Are No Bad People in the World”, ou “não há gente ruim no mundo”.
“Estou confiando em você, nessa única coisa/ Natureza humana/ Por favor, que eu esteja certo”, implora ele no final da canção. É material bastante sombrio, enfim, para o integrante mais solar de um grupo musical que, por si só, já é conhecido pela forma como prega empatia, dignidade e ativismo jovem diante das mazelas do mundo. É superficial entender o BTS apenas como essa entidade cultural eternamente positiva (quem ouviu o Love Yourself: Tear, especialmente, sabe que não é bem assim), mas para o ouvinte casual Jack in the Box certamente é um choque tonal.
Ele é também, é claro, um autêntico divórcio musical das investidas do grupo e do trabalho solo anterior de J-Hope, a mixtape Hope World, de 2018. As ferramentas do pop eletrônico e do R&B são deixadas largamente de lado aqui, substituídas por recursos que nomes do hip hop contemporâneo (pense em Tyler, the Creator, ou Chance the Rapper, ou Blood Orange) usam com dexteridade: especificamente, intervenções instrumentais e vocais repetitivas e grudentas que assistem o flow constante e desenvolto do artista.
Daí o sample de “Shimmy Shimmy Ya”, do Ol’ Dirty Bastard, que acompanha o começo de “What If…?”, mas logo se transforma em um pacote de sintetizadores cavernosos, saídos de alguma canção do Crystal Castles ou do Ladytron (produção brilhante do americano Pdogg). Na sequência mais forte do álbum, a canção é sucedida por “Safety Zone” e “Future”, que abusam de backing vocals singularmente hipnotizantes para acompanhar, por cima de batidas bem simples, as agoniadas reflexões pessoais do artista.
Em “Safety Zone”, um J-Hope exausto lamenta não ter um espaço no qual pode apenas relaxar, sem pressões caírem em seus ombros. Enumerando as possibilidades, ele descarta receber apoio das pessoas em quem confia (“É frio quando elas viram as costas para mim”), das pessoas que tem como mentores (“Se penso nisso, sinto medo”), ou mesmo de sua família (“Um senso de dever que não pode ser confessado”). A conclusão resignada dele? “Eu gosto mais de animais do que de pessoas ultimamente”.
O casamento temporário com as guitarras nos singles “More” e “Arson”, que chegam em momentos diferentes do disco mas expressam mais ou menos o mesmo sentimento de fome por exploração artística e reconhecimento (no sentido de se sentir visto, reconhecido, mesmo), tampouco é incomum no hip-hop. Do Run DMC ao Rage Against the Machine, passando pelo trabalho contemporâneo dos emo rappers como Lil Peep e Juice Wrld, “rap rock” é um guarda-chuva tão robusto que obviamente pode e deve comportar também a música que J-Hope procura fazer com seus produtores.
Rápido em seus 22 minutos (e a decisão de manter as faixas curtas é sábia, porque os truques de produção cansariam em intervalos mais longos), Jack in the Box cava fundo no poço de decepções e perturbações do qual J-Hope pretende tirar os ouvintes. Reconhecer um mundo tão comprometido com a escuridão, no entanto, é também se fortalecer na importância da missão de ser uma das raras luzes brilhando nele.
“Future” é realmente a melhor canção para expressar essa dicotomia. Declarando-se só “um menino que gostava de dançar” e tacitamente reconhecendo que “as coisas um dia vão mudar” em seu super estrelato, J-Hope agradece aos céus “pela vida dada e ele” e abraça a fragilidade de também precisar receber um pouco de esperança às vezes. É parte do bordão do rapper, afinal, sempre que se apresenta ao público: “Eu sou sua esperança, você é minha esperança. Eu sou J-Hope”.
A reciprocidade é chave, como deixa claro o Jack in the Box.