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Por que o Oscar tem medo da Netflix?

Academia criou comitê para investigar pormenores da participação da gigante do streaming na premiação

03.10.2017, às 17H50.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H43

A 90ª cerimônia de entrega do Oscar se aproxima, mas a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ainda não está no clima de celebração. Enquanto os futuros candidatos a uma estatueta passam por festivais (leia a críticas do Festival de Toronto) e agendam suas estreias oficiais até a data limite de 31 de dezembro de 2017, membros da Academia se reuniram para debater questões pertinentes para uma nova era da Sétima Arte.

Segundo o Deadline, essa foi a segunda reunião apenas para membros da história da Academia de Artes e Ciências e contou com 300 participantes de um total de 6.687 votantes. Em pauta, a já repetida questão da diversidade que assombra a premiação desde o polêmico ano do “Oscar so White”, a transparência das campanhas por votos - “Ainda existem muitos jantares com lagostas onde não há nenhuma exibição do filme envolvida”, declarou um dos membros - e a presença entre os candidatos de longas produzidos por serviços de streaming.

Precisamos definir o que é um filme”, disse o responsável (governor) por uma das 17 divisões da Academia (Atores, Diretores de Elenco, Diretores de Fotografia, Figurinistas, Designers, Diretores, Documentaristas, Executivos, Produtores, Montadores, Músicos, Relações Públicas, Animação e curtas-metragem, Som, Efeitos Visuais e Roteiristas). Dentro dessa discussão, um filme da Netflix, por exemplo, não poderia concorrer a uma indicação mesmo tendo cumprido com todas as regras para se tornar elegível, incluindo honrar a data de estreia limite, ter mais de 40 minutos, ser exibido primeiramente e comercialmente em um cinema de Los Angeles (com pelo menos três sessões por dia) e em 35 ou 70 milímetros ou em varredura progressiva de 24 ou 48 quadros por segundo, com imagem em 2048 X 1080 pixels para o formato digital. Um comitê foi formado para investigar essa questão, com atenção especial destinada a possibilidade de um filme da Netflix ganhar um Oscar e um Emmy no mesmo ano.

O grande medo, segundo outro proeminente membro da Academia, é que a Netflix deixe o Oscar com “cara de barato” em função da sua distribuição sem pompa, com pouca ou nenhuma consideração pelos exibidores. Considerando que o Oscar é um prêmio nascido para autocongratular a indústria do cinema de Hollywood, faz todo sentido que a Academia tema a presença de uma empresa que desafia as regras preestabelecidas de produção e distribuição e apresente novas alternativas para o que deveria ser o destino final da arte/entretenimento: o público.

É claro que ver um filme em uma boa sala de cinema não é a mesma coisa do que ver na tela da TV, do computador, de um tablet ou de um smartphone. É uma arte pensada para a tela grande, na imersão do espectador. Ao mesmo tempo, não é possível negar que o streaming torna a sétima arte muito mais democrática. No Brasil, por exemplo, fora das grandes cidades é difícil encontrar cinemas com uma programação fora do circuito comercial. Mesmo nos EUA, país que tem mais de 40 mil salas, os chamados “filmes de arte” tem sua exibição limitada aos grandes centros culturais, como Nova York e Los Angeles. Resumindo, um filme exibido fora da sua tela ideal é muito melhor do que um filme que não é visto por ninguém. O que define o cinematográfico é muito mais a sua narrativa e técnicas de produção (captura de imagens, direção, atuação, fotografia, montagem, som, etc.) do que a forma como chega ao público. Até porque nenhum filme fica em cartaz para sempre e nem deixa de existir quando não é mais projetado. Então se o longa foi feito para a tela de cinema, cumpre com todas as regras estabelecidas pela Academia, mas vai chegar ao grande público de outra maneira, ele deixa de ser um filme?

Okja, o filme da Netflix dirigido por Joon-Ho Bong que causou polêmica durante o Festival de Cannes (saiba mais) justamente pela questão de ser ou não cinema um produto destinado a uma plataforma digital, é um bom exemplo. Expresso do Amanhã, filme anterior do cineasta coreano, também falado em inglês e com um grande elenco, não chegou às telas brasileiras por problemas de distribuição. Encontrou seu público justamente pela Netflix. Okja seguiria o mesmo caminho, mas sua estreia mundial em junho levou o filme ao mesmo tempo para todos os assinantes do serviço. 

Beasts of No Nation (2015), de Cary Fukunaga, o primeiro longa da gigante do streaming e o primeiro a despertar medo na quase centenária Academia, foi visto 3 milhões de vezes na época do seu lançamento apenas nos EUA. Ainda assim, o trabalho foi ignorado pelo Oscar depois de ter recebido indicações para o Globo de Ouro, BAFTA e o Screen Actors Guild Awards (o prêmio do Sindicato dos Atores). Já Manchester à Beira Mar, filme comprado logo depois da sua exibição no Festival de Sundance pela Amazon Studios (empresa criada com foco na criação de conteúdo para as plataformas de exibição digital e streaming da Amazon), não encontrou resistência no Oscar, levando os prêmios de Melhor Ator para Casey Affleck e Melhor Roteiro Original para Kenneth Lonergan.

A diferença entre Manchester à Beira Mar e Beasts of No Nation é que o primeiro seguiu vias mais tradicionais e demorou a ser disponibilizado nas plataformas da Amazon. O filme foi lançado em circuito reduzido nos EUA em 18 de novembro de 2016, ampliando o número de salas em 16 de dezembro e chegou aos cinemas de diversos países, incluindo o Brasil, graças às indicações ao Oscar. No total, Manchester à Beira Mar arrecadou US$ 75,8 milhões para um orçamento de US$ 8,5 milhões antes de chegar ao stream da Amazon em 7 de fevereiro de 2017 e ao Amazon Prime em 5 de maio deste ano. Ou seja, tornou-se rentável para diversas partes da indústria, não apenas uma. 

A Netflix tem diversos filmes programados para 2017 e além. A grande maioria ainda está longe do nível das premiações e segue a linha “filme para a TV”, produzido como entretenimento simples e para rechear o catálogo. Existem, contudo, projetos promissores, com a assinatura de grandes diretores, como The Irishman. Previsto para 2019, o filme de Martin Scorsese pode ser um divisor de águas na briga com o Oscar. Planejado há anos, o projeto passou por diversos estúdios e só encontrou financiamento dentro do serviço de streaming para contar a história real de Frank "O Irlandês" Sheeran, ex-líder sindical acusado de envolvimento com o crime organizado.

Com Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci no elenco, The Irishman tem todos os ingredientes para um grande filme de Scorsese, tornando a sua presença na época de premiações uma grande (e aguardada) possibilidade. Tudo vai depender se a Netflix estará disposta a ter uma passagem mais longa pelos cinemas, antes de disponibilizar o longa para seus assinantes, e se a Academia vai abrir a cabeça para entender que essa sempre foi uma arte em constante evolução, ligada à tecnologia na sua origem. Ignorar isso é admitir aquilo que o Oscar tenta combater há anos: o prêmio se tornou obsoleto.

Os indicados ao Oscar 2018 serão anunciados em 23 de janeiro e a cerimônia será realizada em 4 de março.