A essa altura das muitas adaptações em live-action dos animes e livros infantojuvenis que marcaram o imaginário do público dos últimos 30 anos, já é uma vitória se uma delas faz a lição de casa direito. Avatar: O Último Mestre do Ar entende que sua liberdade criativa envolve aplicar novas ideias na adaptação sem que elas sufoquem ou contradigam o material original. A série produzida por Albert Kim para a Netflix começa sua jornada pisando com cuidado.
Assim como na animação, a nova série apresenta a jornada de Aang (Gordon Cormier), uma criança da Tribo do Ar que, após um século congelada, desperta para descobrir que seu povo foi aniquilado. Como Aang é também a reencarnação do Avatar — a única pessoa capaz de manipular os quatro elementos num mundo dividido entre tribos que respectivamente controlam o fogo, a terra e a água — essa criança carrega consigo a missão de trazer equilíbrio para o mundo dos vivos e o espiritual a partir dos elementos naturais.
O inevitável confronto entre o jovem protagonista e o Senhor do Fogo Ozai (Daniel Kim), que desafia as demais tribos para impor uma hegemonia, é o desfecho inevitável dessa trama. Livremente inspirado no folclore dos monges tibetanos, porém, o arco de Aang implica o pacifismo. Ele se apresenta como uma criança vegana que considera o peso de todas as vidas igual e se recusa a usar seus poderes para destruir. Desde a versão animada de Avatar, isso torna mais particular a evolução e a jornada de Aang, e essa narrativa permanece emocionante também no live-action. Vê-lo ser forçado a amadurecer tão cedo e renunciar a seus princípios para salvar o mundo é o conflito central de Avatar em ambas as versões.
Ainda que a série live-action se apegue ao material original, algumas mudanças fazem diferença, como o fim dos desvios de Aang — que sendo uma criança recém-desperta, gosta de brincar e se entreter a despeito da gravidade que os outros atribuem à sua missão. Esse é o custo principal da mudança de formato, ainda que, na ponta do lápis, os 20 episódios de 23 minutos da animação no “Livro Um” não sejam muito mais do que os oito episódios de quase uma hora na Netflix. Mesmo com as pequenas alterações no roteiro de viagem do trio Aang, Katara (Kiawentiio) e Sokka (Ian Ousley), a primeira temporada mantém seu norte e se esquiva de outras mudanças que possam desagradar os fãs.
A adaptação compensa ao adicionar interações novas; como a relação mais aprofundada de Ozai com seus filhos Zuko (Dallas Liu) e Azula (Elizabeth Liu). Além disso, a temporada termina sem Aang aprender a dobra da água — o que pode servir para justificar o que ele ficou fazendo em um possível pulo temporal entre essa e uma segunda temporada.
As mudanças em relação à série animada nos lembram que os criadores originais, Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, deixaram o projeto ainda no início por diferenças criativas com a Netflix. A experiência recente com Percy Jackson e os Olimpianos mostrou que a presença do criador da obra nos bastidores não é garantia de qualidade. No caso de Avatar — como em todo trabalho de adaptação, de qualquer forma — podemos considerar que o sucesso depende mais da compreensão sobre o material original do que a pura presença de seu criador na sala de roteiristas como um totem de autoridade.
O que Avatar, Percy Jackson e outros casos recentes como One Piece e Yu Yu Hakusho têm em comum é o pouco tempo de tela para recriar tudo o que os fãs amam. Vemos isso em Avatar na rápida resolução dada para a fúria do espírito Hei Bai e no fato de o pergaminho da dobra de água estar na Tribo da Água do Sul, dispensando todo um arco envolvendo a conquista do artefato. A versão em live-action se concentra em reorganizar a história de forma coesa para garantir que o essencial do material original seja ao menos mencionado.
Sabendo aproveitar os recursos de que dispõe, a primeira temporada de Avatar: O Último Mestre do Ar alcança a graça mesmo na imperfeição. Ao se aventurar em uma adaptação de uma franquia cheia de contexto e profundidade, Albert Kim mira nos mínimos denominadores comuns; sua versão começa com uma produção respeitosa aos fãs e interessante para um novo público.