Antes mesmo de despontar como grife em adaptações de HQs, com Guardiões da Galáxia (2014), o cineasta americano James Gunn já brincava com super-heróis. Em 2010, seu filme Super ofereceu um vislumbre do que seria sua fórmula particular: submeter com ironia juvenil esses mitos épicos ao filtro cru da realidade, negando a elementos fantásticos a função de fuga e os empregando como reforço à subversão. Uma década depois, Gunn só refinou o discurso, porque o que vemos em Pacificador é uma variação dessa mesma fórmula — que traz também um apreço romântico irresistível, ainda que por vezes melodramático, pela figura humana.
Nesse meio-tempo, Gunn foi demitido de Guardiões da Galáxia 3 por conta de tweets com piadas sobre pedofilia — feitos 10 anos antes e pelos quais já havia se desculpado — terem sido resgatados por membros da extrema-direita norte-americana. Antes de ser recontratado pela Casa das Ideias, ele encontrou refúgio na Warner Bros., onde realizou O Esquadrão Suicida (2021) e a série de TV derivada com o personagem de John Cena. Contra a apropriação de suas piadas, expostas em um ataque por sua militância contra o então presidente Donald J. Trump, Gunn termina usando Pacificador como um grande e devido direito de resposta.
Tratado como um projeto passional pelo diretor e roteirista, o derivado de O Esquadrão Suicida da HBO Max o vê equilibrar, com uma suavidade ímpar em sua trajetória até aqui, tudo que a moldou. Com o amadurecimento do imbecil anti-herói-título, Gunn demonstra seu próprio crescimento como contador de histórias, ao tecer uma narrativa onde seu particular estilo de humor, sua visão humanista romântica e um texto carregado de crítica social se sustentam de forma simbiótica. A exemplo de tudo que ele havia dirigido antes, Pacificador é mais um produto altamente pessoal para o cineasta, mas pela primeira vez fica a sensação de que isso é mais combustível para a história contada, que justificativa para eventuais idiossincrasias. A liberdade dada pela Warner Bros. ao cineasta exala por cada poro (figurativo) da produção, manifesta por meio de uma violência gráfica e brutal, palavrões que fariam um marinheiro corar, sexo e nudez e contundentes ataques à masculinidade tóxica, ao reacionarismo e ao fascismo da extrema-direita.
"PACIFICADOR, QUE PIADA"
A frase dita por Rick Flag (Joel Kinnaman) em O Esquadrão Suicida é o ponto de partida para a jornada de Christopher Smith (Cena) em Pacificador. Perturbado por ter tirado a vida de outro “soldado”, o assassino defensor da paz se vê livre da cadeia e de volta a uma vida medíocre, desenhada para reforçar sua míope visão de mundo que mistura a defesa de ideais americanos imperialistas às inseguranças de um raivoso incel. O que surge para desafiá-lo é uma força tarefa da A.R.G.U.S., composta por alguns rostos conhecidos da sala de controle de Amanda Waller (Viola Davis), que o convocam como peça-chave para executar a misteriosa “Operação Borboleta”.
Gunn sabe como construir equipes envolventes, e Pacificador traz uma das mais diversas e divertidas das produções inspiradas em quadrinhos até hoje. Entre os personagens que retornam de O Esquadrão Suicida estão a obstinada Emilia Harcourt (Jennifer Holland) e o relapso John Economos (Steve Agee), enquanto o líder Clemson Murn (Chukwudi Iwuji) e a iniciante Leota Adebayo (Danielle Brooks) surgem como gratas surpresas. A exemplo do que já havia feito em Guardiões, o cineasta (que escreveu Pacificador durante a pandemia e dirige cinco dos oito episódios da série) apresenta cada integrante do grupo como um arquétipo típico às histórias de ação em equipe, usando o gradativo aprofundamento deles como gancho não só para prender o público, como revelar a série como tratado sobre a pluralidade humana.
Assim, Gunn faz de Pacificador a sua obra mais honesta até aqui, no sentido de que o tempo todo ela nos lembra e admite que os “comos, ondes, quandos e porquês” que a propulsionam na direção do cumprimento de algo — no caso, a tal “Operação Borboleta” — estão ali só para justificar o que realmente interessa ao cineasta: o desenvolvimento de personagens divertidos que sirvam como alicerces para qualquer que seja a tese central ali defendida. Por que investir em uma série de TV dedicada ao mais antipático protagonista de Esquadrão? Porque sim, responde a produção da HBO Max; porque é isto que James Gunn gosta de fazer: ironizar não só os elementos das histórias que conta, mas também as expectativas do público sobre elas, fazendo com que até a mais ingrata das figuras se torne um sucesso de vendas de action figures.
HBO Max/Divulgação
DAS SOMBRAS À LUZ
A serviço dessa teimosa humanização do personagem-título, Gunn escava os anais das publicações da DC para encontrar personagens aptos a serem moldados à sua vontade. Assim, o obscuro Vigilante (Freddie Stroma) se torna um psicopata infantilizado que persegue Chris Smith como fã número um, insistindo em uma amizade entre ambos que não existe de fato; o praticamente anônimo Mestre do Judô (Nhut Le) é apresentado como uma ameaça surpreendentemente formidável (e viciada em salgadinhos); mas, mais importante, o supervilão neonazista Dragão Branco é mesclado ao pai abusivo do herói-título, Auggie Smith (Robert Patrick), para dar sentido não só à noção distorcida da realidade que vimos em Esquadrão, como também às mensagens anti-conservadoras que Gunn quer explicitar.
Com esse núcleo central bem disposto para definir o presente de seu protagonista, o cineasta consegue traçar interações que primeiro revelam seu passado — justificando atitudes questionáveis e construindo empatia — para depois posicionar alicerces de um futuro pautado por mudanças verossímeis. Gunn detesta personagens estáticos, mas confinado à duração limitada de um filme, sua condução pouco sutil de arcos dramáticos pode, por vezes, soar apressada (Guardiões da Galáxia Vol. 2 e O Esquadrão Suicida que o digam). Aqui, com o espaço oferecido pela narrativa televisiva, ele consegue propor mais e mais duelos ideológicos entre personagens distintos, acomodando com muito mais finesse não só a evolução de Smith, como também dando destaque para personagens secundários. Adebayo, por exemplo, é uma mulher negra e lésbica que por vezes empresta seu ponto de vista ao espectador — algo que ainda beira o revolucionário em produções de quadrinhos, infelizmente.
LACRANDO E LUCRANDO
A renovação para uma segunda temporada antes mesmo do lançamento do último episódio comprova o sucesso da fórmula de Gunn, que também funciona melhor em Pacificador graças a uma liberdade criativa irrestrita inédita. Com isso, o diretor e roteirista não precisa de meias-palavras na hora de retratar homofobia, racismo, sexismo, nazismo, ou simplesmente apontar o dedo para parte de seu público e dizer: “Vocês estão errados”. Melhor ainda, graças à diversidade que construiu entre seus personagens, o diretor pode permitir sem grandes receios que piadas datadas e ofensivas, ou impropérios moralmente condenáveis, façam parte de seu texto como ferramenta de caracterização; elas serão sempre rebatidas por aqueles retratados como mais inteligentes, em posição de poder e admiráveis. É uma sintonia entre meio e mensagem que insistia em escapar das mãos do diretor até então, mas que encontra seu ápice no que é um dos mais bem construídos retratos de um personagem bissexual, em qualquer adaptação de HQs.
HBO Max/Divulgação
O saldo dessa alquimia narrativa, além do trabalho mais coeso da carreira de Gunn, é ver fãs reacionários dos quadrinhos da DC tratando como alguma descoberta incrível o fato de Pacificador adotar uma posição progressista em seu texto. O cineasta injeta na série tanto espetáculo visual, tanto humor desmiolado e tanto fan service aparentemente descompromissado (a abertura nonsense é um deleite) que consegue fazer com que ela seja um passatempo divertido até para quem discorda de sua visão política — ao menos até estampar em primeiro plano seu intuito em igualar a extrema-direita conspiratória com os mais desprezíveis vilões da cultura pop. Se o custo disso é o desenrolar de uma trama cujas implicações e riscos não servem a muito mais do que alavancas para personagens envolventes, me parece uma troca justa.
De quebra, a série ainda traz John Cena em sua melhor forma na frente das câmeras até hoje, tendo espaço para transcender o humor que ele domina com firmeza desde Descompensada (2015) e patinar dignamente em momentos mais dramáticos. Agee é uma revelação como Economos, especialmente na reta final desse primeiro ano, e Brooks — uma atriz de enorme talento — oferece um coração pulsante multifacetado e humano para o típico dramalhão que Gunn ama encaixar em seus terceiros atos. É Stroma, entretanto, que garante o maior número de gargalhadas: corajoso, ele se entrega ao Vigilante sem medo de ser só um Deadpool genérico, e consegue imprimir sua própria identidade no personagem mesmo que tenha seu rosto inteiro coberto em muitas cenas. Isso sem falar nas cenas de ação inventivas em que Eagly, o a águia de estimação de CGI do Pacificador, arranca os olhos de quem ameaça o protagonista.
Imperfeita, mas com Gunn mais consciente do que nunca em relação às suas limitações, Pacificador prova que Rick Flag até tinha razão. Ao som do melhor (e do “menos melhor” também, sejamos sinceros) do rock farofa dos anos 1980, a série é uma piada das boas — daquelas que fazem a galera rir junto e só ofendem a quem merece. Já que teremos mais dela muito em breve, tomara que seja também daquelas que demoram para perder a graça.