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Séries e TV

Crítica

Ripley faz do tédio dos ricos o ingrediente da sua narrativa circular

Série baseada na obra de Patricia Highsmith não aceita com rapidez as facilidades do revanchismo

17.07.2024, às 14H12.

Muito se fala sobre a padronização de narrativas via algoritmo na era dos streamings, mas é preciso dar o braço a torcer em relação a Ripley. O roteirista e diretor Steven Zaillian poderia ter dado para a Netflix um potencial Saltburn se tivesse priorizado o sensacionalismo do thriller homoerótico - afinal, se hoje Emerald Fennell se candidata a grife em Hollywood isso não seria possível sem o caminho trilhado pela autora de Ripley, Patricia Highsmith, há mais de 70 anos. Zaillian, ao contrário, convida o espectador à contrariedade.

A primeira decisão nesse sentido é filmar em preto e branco os oito episódios que formam a minissérie. Dos livros, permanece a essência do golpista-título que comete fraudes (e outros crimes) para ascender socialmente, mas a lembrança ensolarada do filme de Anthony Minghella se esvai entre muitos planos abertos de marés turvas e céus nublados. Andrew Scott, Johnny Flynn e Eliot Sumner aderem às sombras como se fossem versões de Tim Burton dos personagens respectivos que Matt Damon, Jude Law e Philip Seymour Hoffman viveram no filme de 1999.

A segunda decisão, central para a proposta da minissérie, é cadenciar a trama de forma circular. Tom Ripley vê o cerco dos agregados e da polícia se fechar à medida em que deixa seus rastros pela Itália, mas Zaillian prescinde de ganchos de maior impacto ao fim de cada episódio. O suspense é dado na repetição, sem muita pressa: desembarcar do trem e encarar a polícia; planos de estátuas; planos da maré subindo; o gato no banco; a troca de marcha rangendo; “que bela caneta”; a máquina de escrever de volta à mala; a carta no correio; o carregador na estação; mais um livro de hóspedes. Os dois eventos climáticos da temporada (a cena do barco, a visita de Freddie) têm o tempo dilatado de forma quase anticlimática para sublinhar justamente o peso do tempo. 

Há uma questão intrínseca ao alpinismo social de Tom Ripley, que é lidar com a natureza rarefeita dos ricaços, e habituar-se (ou não) a ela. Como diz John Malkovich, cuja presença é um dos poucos easter eggs da minissérie, ali “há muito dinheiro e pouco de todo o resto”. Zaillian faz do tédio da ostentação o ingrediente primeiro da sua narrativa; os muitos planos abertos de paisagens, salas e câmaras trazem os dois, a suntuosidade e o aborrecimento. Os homens e sua presença se diminuem nesses ambientes, corpos frequentemente enquadrados na metade inferior dos planos abertos. Ripley luta para se engrandecer mas jamais terá a paz de espírito que procura para desfrutar da riqueza, então o tédio surge nas repetições como se desafiasse o criminoso a cometer deslizes - ao mesmo tempo em que desafia o espectador a se exasperar com o vagar dessa expectativa.

Evidentemente há uma vaidade de autor implícita nessa operação que chama a nossa atenção para a virtuose da escrita; saber que Zaillian tem longa carreira de roteirista mas ainda precisa se provar como diretor explica muito. De qualquer forma, se escolhemos analisar a arte como um casamento harmonioso entre forma e conteúdo, então Ripley toma essas decisões de forma consistente e justificada. A morbidez que transpira da minissérie não nos causa escândalo, asco ou atração na mesma medida em que parece nos anestesiar - como os ricos se anestesiam, na garantia dos seus privilégios. A schadenfreude contra o 1% é hoje uma das tendências mais previsíveis de Hollywood - filmes e séries como Saltburn, O Menu, Glass Onion, The White Lotus e Succession emulam o discurso de Parasita com todas as facilidades que o revanchismo “eat the rich” oferece - e Ripley consegue se diferenciar ao envolver o espectador na modorra que pretende desvelar.

 

Nota do Crítico
Ótimo