Rebecca Ferguson em Silo (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Silo é uma contradição: irritantemente derivativa, mas cheia de insight

De Cidade das Sombras a Westworld, série empresta de todo canto antes de mostrar o que tem de único

04.07.2023, às 17H11.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H11

Eu não quero ser aquele cara. Sabe, aquele? Aquele que te indica uma série de TV dizendo “mas assiste pelo menos até o 8º episódio da 5ª temporada, porque é a partir daí que fica bom”? Todo mundo conhece, e ninguém gosta desse cara. Então vamos combinar uma coisa: eu não vou te dizer que você deve assistir a Silo porque, a partir de determinado momento muito, muito depois dos primeiros minutos do episódio piloto, a série revela suas garras narrativas e se torna algo infinitamente mais interessante do que parecia. Se você não tem tempo ou paciência para tanto, acredite quando eu digo que te entendo.

O que eu vou te dizer, no entanto, é que definir Silo como uma derivação preguiçosa de outras narrativas de ficção científica é ao mesmo tempo muito justo e terrivelmente limitado. Primeiro porque, como gênero, o sci-fi sempre floresceu a partir de variações de um número finito de arquétipos - a inovação está nos detalhes, no que cada autor ou artista acrescenta a uma história que já conhecemos, não na criação de histórias totalmente novas. Nada se cria, tudo se transforma, certo?

Não que saber disso vá fazer da primeira temporada de Silo uma experiência menos frustrante. Se você assistiu ao filme Cidade das Sombras, de 2008, estrelado por Saoirse Ronan, você essencialmente já viu Silo - ou, ao menos,  uma versão de Silo menos calcada nos padrões “sombrios e realistas” da prestige TV, mais apoiada nas caracterizações frequentemente grotescas da literatura juvenil, e (curiosamente) coestrelada pelo mesmo Tim Robbins. Vale lembrar, inclusive, que o livro de Jeanne Du Prau que inspirou Cidade das Sombras foi lançado oito anos antes de Hugh Howey escrever o conto que daria origem à saga Silo.

Ambas as obras lidam com uma sociedade pós-apocalíptica que sobrevive há séculos em uma vasta cidade subterrânea. O tempo - e a interferência de um governo interessado somente na própria sobrevivência - fez com que os detalhes do mundo antes desse abrigo fossem esquecidos ou deliberadamente apagados. Em Silo, nossa protagonista é Juliette Nichols (Rebecca Ferguson), engenheira que se torna xerife por uma série de circunstâncias violentas e usa a oportunidade para tentar esclarecer a morte do seu ex-namorado, um sujeito questionador que pode ter incomodado os poderosos em sua busca pela verdade.

Se já de cara a familiaridade da trama incomoda, a equipe criativa de Silo não ajuda ao fundar a série em valores estéticos que só podem ser definidos como genéricos, talvez buscando o mesmo reconhecimento acadêmico conseguido por algumas outras séries contemporâneas de ficção e fantasia. É por isso que a trilha de Atl Örvasson usa as mesmíssimas distorções de sintetizador que marcaram o trabalho de Ramin Djawadi em Westworld; que o design de produção de Gavin Bocquet faz as paredes de metal sujas e rachadas do cenário se tornarem virtualmente indistinguíveis das tabernas pseudo-medievais de Game of Thrones; que a fotografia de cada um dos episódios joga fora as muitas possibilidades visuais interessantes oferecidas pela trama e opta pelas cores mudas de uma Chernobyl.

Não se trata de coincidência, claro. O que nessas séries foram escolhas criativas valorosas para realçar a história que estava sendo contada, aqui cheira a decisão de algoritmo, imitação em busca de agradar uma audiência (mal) acostumada a buscar sempre pelos mesmos pontos de excelência - como se só existisse uma maneira de “ser bom”, um manual criativo do “bom gosto” que se aplique a todas as narrativas. Bom, se tal manual existe, Silo é uma série drasticamente pior por tentar segui-lo.

E ainda assim… em alguns momentos brilhantes que conseguem atravessar essa cortina de mediocridade, a série do Apple TV+ deixa óbvio que tem, sim, algo a acrescentar ao cânone da ficção científica. Se histórias similares que vieram antes dela farejaram temas de conformismo e rebelião, das pequenas e grandes violências da politicagem e da diferença de classes, Silo escava esse terreno (perdoem o trocadilho…) até encontrar uma questão forte o bastante para se pendurar: afinal, o que é não saber, e o que o desconhecido faz com o ser humano?

A resposta óbvia está aqui, é claro: nós tememos aquilo que não conhecemos. Mais interessante é perceber como o showrunner Graham Yost retorce as situações da trama para nos mostrar que, às vezes, não saber é um conforto, uma esperança (afinal, o desconhecido parece muito melhor quando tudo o que você conhece é a miséria), um instrumento de poder, uma escolha consciente diante das alternativas disruptivas do saber, um propósito de vida, um salva-vidas contra o luto. Silo parece obstinada em fugir de expressões visuais excitantes desses temas, mas o roteiro não os apaga, e o elenco se agarra a eles com unhas e dentes.

Na fisicalidade desajeitada de Rebecca Ferguson, na oscilação entre docilidade e ameaça de Tim Robbins, na coragem desafetada de Harriet Walter, na ousadia machucada de Rashida Jones (que está só no primeiro episódio, mas não sai da cabeça do espectador até o fim da série)… as performances de Silo a desnudam como uma história de insight humano valioso, que poderia e merecia ser excitante de acompanhar para além dos excessivamente raros momentos em que sua garra suplanta a sua busca insistente por mediocridade. Bom, quem sabe na segunda temporada, né?

Nota do Crítico
Regular