É bastante comum ir procurar qualquer lista de melhores séries da década de 2000, do século XXI ou de todos os tempos e dar de cara com Família Soprano no pódio – ou até mesmo com a medalha de ouro. A produção criada por David Chase e exibida pela primeira vez em 10 de janeiro de 1999 pela HBO, há exatos 25 anos, é um marco da televisão e o produto cultural responsável por transformar a imagem do meio.
Antes ignorado pela indústria cinematográfica, o universo televisivo se viu transformado após a estreia protagonizada pelo saudoso James Gandolfini (que faleceu em 2013). Seis temporadas e 86 episódios depois, ela deixaria de ser apenas uma série da máfia para se tornar “o Cidadão Kane da TV” – embora acredite que a analogia perfeita talvez fosse com O Poderoso Chefão, obviamente.
Mas apesar de tamanho respaldo, existem muitas pessoas que não compreendem exatamente como ela foi importante para moldar o cenário televisivo desde o seu lançamento. Por isso, hoje, no aniversário de 25 anos da produção, o Omelete listou as principais mudanças de formato que a série ajudou a popularizar na televisão – e sem spoilers, para não desencorajar quem ainda não teve a oportunidade de vivenciar a série.
Linguagem cinematográfica
Episódio "Made in America", de The Sopranos (Warner Bros/Reprodução)
A televisão já foi frequentemente rotulada como "o primo feio do entretenimento", possivelmente devido à forma como as produções eram realizadas e filmadas. David Chase, que já se autodeclarou como um cineasta frustrado e alguém que odiava televisão, decidiu transformar Família Soprano em algo mais próximo de um filme de 13 horas do que de uma série com 13 episódios por temporada. Para alcançar esse objetivo, ele optou por filmar a série em widescreen e investiu em uma edição marcada por closes, planos e tomadas mais elaboradas, tudo para distanciar sua criação das demais séries da época.
Para a sua sorte, estar na HBO significava que seus episódios não seriam interrompidos por intervalos comerciais grosseiros. A sigla também tinha planos ambiciosos com a produção de Chase, tanto que nunca hesitou em abrir os bolsos para financiar os episódios, que custavam cerca de US$ 2 milhões na época. Para efeito de comparação, um episódio de Game of Thrones custava, em média, US$ 10 milhões – mais de uma década depois do lançamento de Sopranos.
Não surpreendentemente, Família Soprano também detém o status de ter sido a primeira série da história a ser exibida no Museu de Arte Moderna de Nova York.
Narrativa serializada
Episódio "Soprano's Home Movies", de Família Soprano (HBO/Divulgação)
Família Soprano foi crucial para transformar a narrativa das séries televisivas. Por muito tempo, as produções para televisão se concentravam em personagens fixos e histórias isoladas, sem uma continuidade clara entre os episódios seguintes.
Embora Sopranos não tenha sido a pioneira do drama serializado norte-americano (esse título pertence a Hill Street Blues, conhecida como Chumbo Grosso no Brasil), ela o popularizou. Além da linguagem cinematográfica mencionada anteriormente, a série optou por uma narrativa que se desenrolava semanalmente ao longo de uma temporada inteira, ou às vezes até em mais de uma.
Esse modelo foi rapidamente adotado por séries de diversos gêneros e emissoras, pois, com a aclamação e os altos índices de audiência de Família Soprano, ficou comprovado que o público americano era capaz de assimilar – e apreciar – uma narrativa serializada.
Interseção entre a comédia e o drama
Episódio "Pine Barrens", de Família Soprano (HBO/Divulgação)
As discussões sobre The Bear ser uma comédia e The White Lotus ser um drama não são tão inéditas para quem já assistiu à Família Soprano.
Sim, apesar de Família Soprano ser claramente uma série dramática, ao mesmo tempo ela conseguia ser tão engraçada quanto uma boa sitcom – parte disso graças a figuras como Paulie Gualtieri (Tony Sirico), Christopher Moltisanti (Michael Imperioli), Silvio Dante (Steven Van Zandt) e Janice Soprano (Aida Turturro). Família Soprano também era recheada de piadas hilárias e sequências absurdas, uma marca característica da série que nunca foi abandonada, nem mesmo em seus momentos finais – período em que geralmente boa parte das produções decide se manter a um só tom para manter a tensão até o desfecho.
Para quem duvida disso, segue aqui um desafio: tente assistir ao episódio "Pine Barrens", o décimo primeiro da terceira temporada, de modo isolado – algo realizável sem cair em um mar de spoilers. Acreditem, é possível acompanhar os acontecimentos e ter a sensação de estar assistindo a um filme dirigido pelos Irmãos Coen.
Não é televisão, é HBO
Antes de Família Soprano, a HBO era reconhecida como o canal de TV a cabo que transmitia repetições de filmes e apresentava lutas de boxe. No entanto, tudo mudou quando David Chase apresentou uma ideia que havia sido rejeitada pela CBS, que, segundo o próprio, buscava uma abordagem menos psicológica e mais violenta para uma história sobre a máfia. Família Soprano estreou juntamente com outras produções do canal, como um drama sobre prisioneiros em uma prisão de segurança máxima chamado Oz, e uma comédia sobre as desventuras sexuais de quatro amigas em Nova York, intitulada Sex and the City.
Contudo, assim que Sopranos foi ao ar, pareceu que toda a audiência da emissora também alçou voo junto. Rapidamente, tornou-se evidente que a cultura pop estava totalmente focada em Tony e Carmela (Edie Falco), seja pelas menções em outras séries, programas de TV ou capas de revistas que traziam James Gandolfini. Em 1999, Família Soprano fez história ao se tornar a primeira série de TV a cabo a receber uma indicação ao Emmy como Melhor Drama – e também a primeira a ganhar esse prêmio, o que aconteceu no ano de 2004. Com o sucesso da série, a HBO não demorou a aprovar outras produções no mesmo estilo, como A Sete Palmos, Deadwood e The Wire.
Outras emissoras seguiram o exemplo, decidindo produzir séries mais sofisticadas e semelhantes à abordagem de David Chase. A AMC deu luz verde a Mad Men e Breaking Bad, o FX produziu The Shield, o USA revigorou Battlestar Galactica com uma abordagem mais serializada, e, posteriormente, as plataformas de streaming adotaram a mesma tendência.
O pai dos anti-heróis
HBO/Reprodução
Tony Soprano não era apenas um mafioso; ele era também um marido e pai, e um homem com ansiedade e depressão. Tony exibia características agressivas, manipuladoras e perigosas, enquanto, ao mesmo tempo, demonstrava ser carente, amoroso e encantador. Sua relação conturbada com sua mãe acrescentava uma camada adicional de complexidade.
A dinâmica de sua família influenciava sua abordagem nos negócios da máfia, ou seria o contrário? Mesmo após mais de 86 episódios, ainda é difícil determinar qual é a verdadeira face de Tony. Em uma época em que os personagens ou eram bons, ou eram maus, ter um personagem que apresentasse ambos os arquétipos em um só fez com que todo o público questionasse a própria moralidade ao se ver cativado por um mafioso com problemas de ansiedade.
Tony também serviu para conceber personagens da mesma linha que surgiram posteriormente, os famosos "anti-heróis", como o Frank Underwood (Kevin Spacey) de House of Cards, Don Draper (Jon Hamm) de Mad Men, Dexter Morgan (Michael C. Hall) de Dexter, Vic Mackey (Michael Chiklis) de The Shield, entre outros. Até mesmo Bryan Cranston reconhece – e é grato – pela série de David Chase. "Sem Tony Soprano simplesmente não haveria Walter White", disse o astro de Breaking Bad.
Um final às avessas
Episódio "Made In America", de Família Soprano (HBO/Divulgação)
O que se espera de um final de série, filme ou livro é, essencialmente, uma resolução satisfatória para todos os personagens e tramas.
No entanto, David Chase parece discordar dessa ideia. O final de Família Soprano, exibido há quase 17 anos, ainda provoca debates entre aqueles que assistiram à série. Isso porque ao invés de explicar ao espectador o destino de Tony Soprano através de uma montagem com flashforwards ou uma narração em off, recurso narrativos que as séries comumente empregam para amarrar as pontas, o showrunner optou deliberadamente por surpreender o público, deixando mais dúvidas do que respostas.
Com um corte brusco acompanhado por um silêncio ensurdecedor e uma tela preta antes dos créditos finais, Chase criou um desfecho corajoso e inusitado. Houve até mesmo relatos de telespectadores americanos que ficaram indignados, chegando a acreditar que a transmissão havia sido interrompida ou que a conta da TV a cabo estivesse atrasada. Independentemente do que tenha acontecido naquela lanchonete onde Tony, Carmela e A.J (Robert Iler) estavam sentados, é um momento inesquecível e totalmente condizente com o universo da série, que sempre evitou soluções fáceis.
Ao longo dos anos, Chase sempre resistiu a explicar ou oferecer detalhes sobre o destino de Tony. Inclusive, em sua primeira entrevista após a exibição do final, ele disse categoricamente que "não tinha o menor interesse em explicar, defender, reinterpretar ou adicionar" para o que havia sido mostrado na tela. No entanto, em 2014, o roteirista decidiu encerrar as especulações e revelou ao Vox o que muitos fãs aguardavam: "Não, ele não morre." Até hoje, permanece incerto se o showrunner se referia ao personagem dentro ou fora das telas, mas, considerando o tempo que passou, é razoável assumir que sua resposta se aplique a ambos os casos.
Especialmente porque, fora das telas, a série continua presente e vibrante – e provavelmente permanecerá assim para sempre.
Onde assistir à Família Soprano?
HBO/Divulgação
No Brasil, Família Soprano já foi exibida pela HBO Brasil, SBT, Rede Bandeirantes e Warner Channel.
Atualmente, todos os episódios de Família Soprano estão disponíveis para streaming pela HBO Max e são exibidos dentro da grade da HBO Brasil. Boxes com todas as temporadas completas também continuam à venda pela internet.
Em comemoração aos 25 anos da série, a HBO Max também está disponibilizando o piloto da produção no streaming para não assinantes.