Não vou mentir, celebrei muito quando James Gunn foi anunciado como novo copresidente do DC Studios ao lado de Peter Safran. Não só porque acho ele um dos cineastas mais completos dentro do gênero de super-heróis, mas também porque seu repertório em termos de histórias em quadrinhos vai muito além dos chamados “clássicos obrigatórios” como Batman: O Cavaleiro das Trevas, Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven e afins. Com seus trabalhos na DC e na Marvel, ele transformou personagens de quinto escalão como Pacificador, Bolinha, os Guardiões da Galáxia e até o Doninha em favoritos do público, inserindo-os em histórias espirituosas muito mais condizentes com o material original que muitos filmes protagonizados por heróis “peso-pesado”. Por mais que ele já tenha trazido uma bem-vinda criatividade a essas franquias bilionárias, seu novo cargo o coloca na posição perfeita para ousar ainda mais e trazer um pouco de loucura para o novo DCU, que poderia se apoiar na famosa Era de Prata dos Quadrinhos.
Antes de me aprofundar nesse meu pedido, um pouco de contexto. Na primeira metade da década de 1950, o psiquiatra norte-americano Fredric Wertham ligou, de forma para lá de apocalíptica, os quadrinhos de super-herói ao aumento da delinquência juvenil e, como muitos desinformados seguem fazendo até hoje, à homossexualidade em seu livro Sedução do Inocente. A publicação causou uma cadeia de acontecimentos que levou à criação do Comics Code Authority (CCA), código de ética que limitava como quadrinistas poderiam mostrar heróis combatendo o crime. Apesar de ser, em todos os sentidos da palavra, uma censura, seu surgimento obrigou artistas e roteiristas a exercitarem sua criatividade como nunca, resultando na criação de algumas das histórias mais pinéis que já agraciaram a oitava arte. (Sim, esse foi um resumo extremamente básico dos efeitos do CCA, mas aqui no Omelete você encontra textos completamente dedicados ao assunto como este, escrito por Mario Abbade, e este, do nosso amigo Érico Assis).
De viagens intergaláticas ao multiverso, a Era de Prata foi responsável por apresentar alguns dos conceitos e personagens mais importantes dos gibis até hoje. Foi nela, inclusive, que vimos o surgimento da Liga da Justiça e do Quarteto Fantástico e o desenvolvimento da icônica amizade entre Superman e Batman. Ainda que ela tenha dado lugar ao movimento mais cínico da Era de Bronze e ao pseudo-realismo que domina a indústria desde que os heróis se tornaram matéria prima para grandes blockbusters, essa época segue servindo de inspiração para alguns dos melhores quadrinhos dos últimos anos.
De Bat-bebê a Superman atirando mini-Supermen das mãos: a Era de Prata teve de tudo
Em 2022, por exemplo, duas das revistas que mais me diverti lendo foram X-Terminators, que mostra um grupo de mutantes formado por Jubileu, Wolverine, Dinamite e Cristal enfrentando uma horda de vampiros, e Flash #787, que mostra o herói titular entrando acidentalmente em um torneio de luta-livre intergaláctico. Evitando a hiperracionalização que assombra o gênero, esses títulos se focaram só em aliar o desenvolvimento de seus personagens à diversão do leitor, abraçando o lúdico e abdicando de qualquer ligação com o realismo. Essa dedicação ao entretenimento “puro” é típica da Era de Prata e uma característica que raramente tem dado as caras nas grandes produções do gênero.
É aí que Gunn e sua paixão por quadrinhos mais doidos entram. Seja em Guardiões da Galáxia ou em O Pacificador, o diretor já mostrou que se sente mais à vontade criando histórias coloridas bem-humoradas, que até já vinham se fazendo presentes no DCEU desde de Aquaman. No comando do DC Studios, o cineasta pode fazer o novo DCU dar um passo além, aproximando ainda mais as produções do selo às histórias originais e dando uma roupagem mais moderna aos conceitos surreais da Era de Prata.
Na última terça-feira (17), o próprio Gunn deu sinais de que tem interesse nessa abordagem. Em seu Twitter, ele compartilhou uma foto de DC Grandes Astros: Superman, premiada história de Grant Morrison, Frank Quitely e Jamie Grant lançada entre 2005 e 2008 e que, como muitos trabalhos de Morrison, trouxe para o então presente a insanidade criativa da Era de Prata. Claro, posso muito bem estar apenas vendo sinais inexistentes, mas não podemos descartar a possibilidade do chefão do DC Studios estar dando dicas do que esperar do futuro dos personagens da editora nos cinemas.
The secret to happiness is starting the morning with coffee and comic books. pic.twitter.com/NCAKhD6xoC
— James Gunn (@JamesGunn) January 17, 2023
Se esse for o caso, as novas produções da DC trarão um grande diferencial em relação ao que vemos hoje no MCU. Não que a Casa das Ideias evite histórias coloridas ou “fora da casinha” (Thor: Ragnarok, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis e Mulher-Hulk: Defensora de Heróis que o digam), mas porque a franquia de Kevin Feige ainda se prende a uma noção equivocada de que seu público não conseguirá acompanhar suas histórias a não ser que elas tragam a verossimilhança cínica instaurada nos anos 1980. Abdicar de vez desse realismo traria um grande frescor ao gênero de heróis e daria um descanso à infame discussão sobre a saturação do mercado que vira e mexe dá as caras.
Como falei em outro texto sobre o possível futuro da DC, acredito que basear a nova era de adaptações do selo em uma das épocas mais criativamente prolíficas de sua história é também uma forma de atrair artistas com ideias ainda mais diversas para a franquia, criando um universo tão plural quanto o das páginas. Claro, a Era de Prata nasceu da censura e da imposição de valores retrógrados, mas não faltam exemplos de quadrinistas renomados que souberam modernizar seus principais conceitos para contar histórias relevantes para o público atual, como Gail Simone, Mark Waid, Leah Williams, Matt Fraction e Jeremy Adams. Da mesma forma, Gunn e Safran não devem encontrar dificuldade em atrair cineastas dispostos a adaptar os grandes heróis da DC de forma criativa e divertida e que transforme o gênero em mais do que apenas um caça-níqueis sem coração.
Período teve até Mulher-Maravilha mãe de pet
Reeducação do nerd adultão
Nas últimas semanas, um debate completamente desnecessário em torno da “gravidez” do Coringa, apresentada em Joker: The Man Who Stopped Laughing, tomou as redes. A história em questão foi contada em poucas páginas não-canônicas e mostrava o Palhaço do Crime sendo alvo de uma magia da Zatanna que o deixou grávido de um bizarro bebê, feito de um pedaço do Cara-de-Barro. Como já era de se esperar, não faltaram reportagens mal-informadas sobre o assunto, com alguns portais conservadores inclusive afirmando erroneamente que a DC havia transformado o vilão de Gotham em um homem trans, incentivada pela “cultura da lacração”. Quem se deu o trabalho de ler a história - que, aliás, tem apenas oito páginas e pode ser concluída em uma rápida ida ao banheiro -, saberia que ela não passa de um exercício lúdico extremamente similar ao que abundava a Era de Prata, mas que vinha desaparecendo depois que parte do público começou a espernear por produções “adultas”. O próprio autor da edição “polêmica”, Matthew Rosenberg, confirmou que a história é uma homenagem ao período e apenas “uma tirinha boba” e inconsequente. Se apoiar mais na Era de Prata e menos em títulos renomados da Era de Bronze (1970 até meados dos anos 1980) e da Era Moderna (1986 até o presente) expandiria a percepção do público do que são os gibis de herói - e de que tipo de histórias eles podem contar.
Goste ou não deste fato, super-heróis são personagens voltados a crianças e adolescentes e suas histórias foram idealizadas como fábulas modernas feitas para ensinar e incentivar esses leitores a se tornarem adultos bons e respeitosos. Embora tais narrativas já tenham, de certa forma, evoluído para além de um reflexo moral de determinada época, usar o tom lúdico e inocente perpetuado nos gibis dos anos 1950 e 1960 como regra e não como exceção devolveria o foco das produções de herói à mensagem que trazem ao invés da porradaria que eles protagonizam em seus terceiros atos.
Ao mesmo tempo, a exploração de novos tons e tramas não significa um descarte de temáticas adultas importantes. O próprio Gunn usou a comédia e a violência proporcionada pelos personagens bizarros de O Esquadrão Suicida para criticar os métodos desumanos do imperialismo norte-americano de forma bem didática. Também no DCEU, Cathy Yan e suas Aves de Rapina abordaram abuso e machismo em um filme que, além de excelente, é tão colorido quanto criativo e, de certa forma, poderia servir como um convite para que os fãs acomodados na verossimilhança buscassem conhecer mais de seus personagens para além dos best-sellers. Nenhuma das mensagens trazidas nos filmes citados se torna menos relevante por estarem inseridas em uma produção fantasiosa. Inclusive, os longas apenas garantiram que esses debates fossem levados à frente e apresentados de forma mais simples a um público maior do que nunca.
Olhar com carinho para as criações da Era de Prata é essencial para encontrar uma forma de evoluir a indústria que se formou em torno das grandes adaptações de gibis e entender que a liberdade criativa é essencial para que o gênero não fique estagnado. Espero, de coração, que Gunn e Safran já tenham chegado à mesma conclusão e nos presenteiem com filmes e séries cada vez mais coloridas, insanas e com ainda mais a dizer.