Toda visita ao set de um filme sempre me pareceu um sonho. Digo não só pelo romantismo da situação para quem ama cinema e recebe a oportunidade de estar nos bastidores de uma produção cinematográfica, mas pelo longo tempo de espera entre essa visita e a queda do embargo (a data definida pelos estúdios para que os jornalistas possam publicar os conteúdos relacionados antes da estreia do filme). Com o tempo, aquele dia longo de emoções e espera, quase sempre acompanhado da fadiga de quem chegara ao local depois de um voo de 10 ou 12 horas, se torna cada vez menos nítido, por mais que os áudios das entrevistas e as anotações feitas no dia refresquem a memória. No caso de Mulher-Maravilha 1984, essa visita às filmagens, realizada em 2 de setembro de 2018, parece outra realidade. O mundo era outro, afinal.
Inicialmente, a continuação do sucesso de 2017 estrelado por Gal Gadot e dirigido por Patty Jenkins tinha previsão de lançamento para dezembro de 2019. Depois foi adiantado em algumas semanas para 1º de novembro. Pensando em criar uma janela de lançamento mais favorável, a Warner Bros. decidiu fazer uma nova mudança e adiar o filme em alguns meses: 4 de junho de 2020 passou a ser a data de estreia. Todas essas alterações são parte da rotina dos estúdios, sempre em busca da estratégia mais lucrativa para a produção (levando em conta, por exemplo, a concorrência do período e o número de semanas que filme terá para dominar as bilheterias). E aí veio a pandemia.
No início de março, poucos dias antes de começar a quarentena, recebi um e-mail comunicando que o embargo da visita ao set de 1984 cairia em alguns dias. Apesar do adiamento por tempo indeterminado de grandes lançamentos como Um Lugar Silencioso II, Mulan e Viúva Negra, os estúdios ainda tentavam compreender a extensão da crise e mantinham seus calendários de divulgação. Não demorou, porém, para que a estreia em 4 de junho caísse e minha visita ao set fosse engavetada. Em um prognóstico otimista, Mulher-Maravilha 1984 chegaria aos cinemas em 14 de agosto. A situação não melhorou, principalmente na América do Norte e dos países da América Latina, e mais mudanças foram feitas no calendário. Para não entrar em conflito com Tenet, uma nova data foi anunciada. Por enquanto, 15 de outubro é o dia marcado para Diana Prince retornar aos cinemas e, hoje, quase dois anos depois, o embargo sobre a visita ao set caiu. Posso, enfim, resgatar e compartilhar essa memória de uma outra vida.
Túnel do tempo
Já estava no Reino Unido há alguns dias por conta de outro set visit, MIB: Internacional (que estreou em junho de 2019), o jet lag já não era um problema. Apesar da preocupação de que o clima londrino prejudicasse as filmagens, o sol brilhava naquele 2 de setembro. Às 8h, o grupo de cerca de 15 jornalistas, vindos de diferentes partes do mundo, já estava no lobby do hotel, localizado na região central de Londres, aguardando o transporte que nos levaria para a locação.
De ônibus fomos levados para o distrito financeiro da cidade, onde a produção usava a base de um prédio comercial para recriar uma saída do metrô de Washington, o novo lar de Diana, onde a amazona trabalha como antropóloga e arqueóloga no Museu de História Natural. Antes mesmo de chegar ao local já era possível ver o deslocamento na linha temporal. Entre grandes caminhões de equipamentos, carros e figurantes revelavam que estávamos na década de 1980. Fomos recebidos pela simpática Lee Anne Muldoon, publicist (a responsável por mediar o contato entre a imprensa e a produção durante as filmagens) que já conhecia pela visita ao set de Esquadrão Suicida e pelo trabalho no primeiro Mulher-Maravilha.
Debaixo de uma tenda, entre barulhos de motor (ao fundo uma equipe preparava uma moto para a próxima cena), a produtora associada Anna Obropta começa a rodada de entrevistas com uma apresentação completa sobre o conceito do segundo longa. O ano de 1984 foi escolhido por ser um período de excessos, seja no glamour, na riqueza ou na violência que tomava conta dos EUA. A intenção não é criar uma paródia da época, mas usar essa atmosfera para estabelecer uma história sobre aprendizado, para a Mulher-Maravilha e para o mundo. O caminho para essa lição de vida passa pelo tema principal do longa: desejo. Maxwell Lord, o personagem à la Donald Trump de Pedro Pascal, venderá o sonho americano em comerciais para a TV, sendo responsável pela transformação da tímida e intelectual Barbara Minerva na vilã Cheetah (interpretada por Kristen Wiig). “Mas o que acontece quando os sonhos do mundo todo se tornam realidade ao mesmo tempo?”, questiona Obropta no final da apresentação.
Somos interrompidos pela informação de que estão prontos para rodar a próxima cena. Figurantes em trajes coloridos ocupam suas marcas no vão do prédio. Placas cenográficas sinalizam a saída do metrô. Gal Gadot, usa um terno masculino cinza, colete azul e camisa branca amarrados por um cinto (que mais tarde descobrimos ser apenas uma referência acidental à série de TV). Chris Pine está com a roupa esportiva e pochete vista na imagem que anunciou o seu retorno para a sequência. Os dois são acompanhados pela câmera em meio a uma confusão de sons e movimentos - em um canto alguém toca um balde como tambor, de outro um figurante atravessa de patins, enquanto outros passam pela apressados pela dupla. Essa ação coordenada é repetida pelo menos três vezes. “Corta!”. Somos então levados a um outro ponto nos arredores para que a equipe possa preparar o espaço para uma nova cena.
Debaixo de uma árvore, aguardamos a próxima entrevista. Enquanto isso, ao lado do cenário em que acabaram de gravar, Gal Gadot, Chris Pine e a diretora Patty Jenkins conversam animadamente. Logo depois, a dupla de atores chega para ocupar as duas cadeiras a nossa frente. Lee Anne Muldoon nos apresenta, diz que somos de diversos lugares do mundo, “EUA, Rússia, Reino Unido, Austrália…”, “Brasil...”, complemento ao fundo. “Brraaasil!”, repetem Pine e Gadot. “Bela camiseta, por sinal”, diz o ator olhando para a estampa de Elvis no clipe Jailhouse que me acompanhava no dia.
A dupla, sempre entrosada, nos conta sobre o retorno para o segundo longa, o que incluiu uma maior participação do elenco na criação do visual dos personagens. Pine sugeriu que Trevor ganhasse a já citada pochete para se adaptar aos novos tempos enquanto Gadot conta que encontrou nas campanhas estreladas por Brooke Shields para a Ralph Lauren a referência para o figurino de Diana (visual que coincidentemente também foi usado por Lynda Carter na série da Mulher-Maravilha).
O novo filme muda a dinâmica no relacionamento entre os dois personagens. Dessa vez, ele é o peixe fora d’água, um homem de outro tempo, e ela carrega a experiência de todos os seus anos na Terra. Sem poder revelar muito mais sobre a trama, a dupla discute o significado de Mulher-Maravilha. Gadot falou sobre o orgulho de incorporar a mensagem positiva representada pela heroína, enquanto Pine discursou sobre a importância de ter em Trevor um herói capaz de lutar e de se mostrar vulnerável para dar nuances ao que se entende por masculinidade e que saber apreciar a vida pode ser muito mais poderoso do que a simples força bruta. “Que lindo!”, exclamou Gadot encantada com a sensibilidade do colega.
Enquanto a equipe tentava fazer mistério sobre o retorno de Trevor, é certo que a sua volta seja fruto de um desejo de Diana atendido por Maxwell Lord. Patty Jenkins, que ocupou a cadeira de entrevista logo depois, nos garante que sempre soube como o personagem retornaria. E é verdade. Quando a entrevistei para a divulgação do primeiro longa, em março de 2017, ela já falava da sequência: “Penso em um segundo filme o tempo todo, e mais. Não tenho interesse em fazer um filme sobre um personagem completamente sem mudanças. A vida não é assim. Nesse caso, estava extremamente interessada no contraste entre a sua confiança e ingenuidade com o mundo, como é essa jornada e o que é decidido no final. No próximo filme acho que haverá uma nova jornada, diferente, mas que precisa ser tão vulnerável e complicada como essa primeira”. No set do segundo filme, a diretora contou que ela e Geoff Johns trabalhavam no roteiro de Mulher-Maravilha 1984 desde a fase de divulgação do primeiro filme.
Ainda assim, mais uma vez somos lembrados de que essa é uma produção independente. Embora conte com o retorno do elenco principal e da equipe técnica do primeiro filme, 1984 não depende do seu antecessor, “Não quero fazer mais de alguma coisa, quero encontrar um novo caminho para outra grande história”, afirmou a diretora. Seu foco está em criar uma narrativa humana e universal, ao que um dos jornalistas do grupo emendou uma pergunta sobre a conversa animada que testemunhamos antes, “vocês estavam discutindo alguma cena?”. “Não”, responde Jenkins sorrindo. “Fico brincando que amo tanto eles. Geralmente você trabalha com as pessoas e diz ‘espero que continuemos amigos’, mas eu os amo. E, sem querer soar brega, mas há algo no que Mulher-Maravilha representa que você acaba buscando em você mesma e em trazer isso para o mundo. É sobre a beleza das coisas e você pensa sobre isso na sua vida. Somos todos muito diferentes e estávamos conversando sobre isso lá, algo mais espiritual”.
Essa conexão entre diretora e equipe se via refletida por todo o set, até mesmo na forma informal como encontramos Pedro Pascal a caminho da filmagem quando já estávamos prontos para encerrar o dia. O loiro alaranjado da peruca e o terno oitentista o deixavam quase irreconhecível. Sem poder falar muito sobre Maxwell Lord além de que ele seria um ser humano bastante complexo e dono de muitos ternos, o ator contou sobre a pequena infração cometida no início das filmagens, quando acidentalmente divulgou uma imagem com o elenco principal e Jenkins parodiando o Clube dos Cinco. “Não fui punido porque foi um acidente”, contou rindo em defesa própria, “vocês vão me achar muito burro, mas o que aconteceu foi que queria usar os stories do Instagram para colocar um filtro no foto. Só ia colocar o filtro e deletar, mas acidentalmente publiquei a imagem”.
A gafe adorável, porém, fez sucesso entre os fãs e é mais uma prova do entrosamento que deve fazer a diferença em Mulher-Maravilha 1984. Se as cores saturadas da fotografia de Matthew Jensen já apontam para um filme mais leve e animado, o clima no set deixava claro que toda a sensibilidade necessária a uma trama sobre desejo e aprendizado estava nas pessoas trabalhando para que aquelas ideias tomassem forma. Quase dois anos depois desse dia ensolarado em Londres, encaramos uma realidade sombria e é reconfortante pensar que, quando não houver mais qualquer risco para se voltar aos cinemas, Mulher-Maravilha estará lá, pronta para nos relembrar a beleza da verdade e do amor que se perdeu nesse tempo.