Já se vão quase 15 anos de uma dieta permanente de filmes do MCU, às vezes três ou quatro por ano, sem contar os seriados, e isso obviamente tem um impacto na padronização do gosto. A Marvel determina o que um filme de super-herói pode ou não pode ser, e quando aparece um Morbius da vida, desafiando o padrão pela ousadia e também pelo erro, a nossa reação inicial é a do cringe.
Faz sentido que os memes sobre o significado de cringe tenham surgido no Brasil depois de um debate geracional, millennials versus geração Z, porque alguém só pode se constranger pelo gosto alheio quando adquire uma consciência dos modismos e do tempo. Morbius está fadado a ser visto em 2022 como um objeto de vergonha porque já chega com espírito de velho, um candidato tortuoso a filme de ação que ignora as convenções do modismo.
A principal dessas convenções hoje, consagrada pelo MCU, é a da autorreferência, e logo de cara Morbius revoga essa regra ao se oferecer como um quadro em branco, 100% permeável a referências alheias a si. Trata-se de um filme de vampiros, afinal, um subgênero do horror tão diluído na cultura pop que a permeabilidade talvez já tenha se tornado sua característica principal. Morbius não se faz de desentendido e abre-se a todo tipo de influência: de Matrix (1999) e John Wick (2014) a Nosferatu e Os Suspeitos (1995), passando por uma definição de imaginário, iconografia e superpoderes que combina Homem-Aranha, Batman e X-Men.
Essa permeabilidade que não pede desculpas é a grande fonte de energia do filme, que tenta se equilibrar até o fim como um pastiche de horror e super-heróis. Não está muito distante, nesse sentido, da proposta de Blade no longevo ano de 1998, e um filme como Morbius só poderia ser produzido mesmo por um veterano anacrônico dos super-heróis como Avi Arad, cujas digitais estão não apenas em Homem-Aranha mas também em Blade e Venom (2018). Morbius tem em comum com Venom, acima de tudo, a convicção de que um filme só precisa ser fiel às regras que ele cria para si mesmo, incluindo aí padrões do que seria o bom gosto.
Das maquiagens de vampiro, dignas de Buffy, ao figurino de Matt Smith, cujo terno de ombreiras parece mais com o uniforme de um vilão de Dick Tracy (1990), Morbius toma uma série de escolhas de caracterização que desafiam o asseio do MCU e tentam resgatar um caráter cartunesco que esses filmes de fantasia perderam com a massificação do aceitável. Os filmes de super-herói precisaram se prender ao realismo pois só assim perderiam sua excepcionalidade; não há padronização possível no que é excepcional.
Já Avi Arad, a Sony e o diretor de Morbius, Daniel Espinosa, entendem que seu produto só vai conseguir competir no mercado da tecnocracia se almejar o ruído. Isso acontece em Morbius numa operação de tentativas e erros que por vezes é quase antiestética, e ao mesmo tempo muito livre e criativa. Essa operação implica flertar com o grotesco e com a vergonha, que vem primeiro do estranhamento. Então quando Matt Smith descobre que virou um vampiro bombado, ele não só tira a roupa e revela o peito raspado, como qualquer galã da Marvel, mas também faz uma dancinha cringe de striptease. Há na literatura de Anne Rice essa ideia do vampirismo como uma eterna boate gay e o precedente está aí sendo colocado em ação em Morbius num triângulo amoroso de contornos homoeróticos.
Ao ator Jared Leto cabe o papel não menos importante de encarar tudo isso a sério. Se tem uma coisa que não fica datada em Hollywood é a tendência ao Método, e Leto interpreta seu Michael Morbius com toda a verdade possível de quem andou de muletas no set para entrar no personagem. Ainda assim, é possível vislumbrar na atuação uma gaiatice, linhas de diálogo entregues com a indolência de quem no fundo se ironiza. De todos os trabalhos já feitos por Leto no cinema talvez Morbius seja aquele que melhor se aproxima da persona do astro de rock, que precisa estar presente e entregue mas também consciente de si. A linha do pastiche é sempre muito tênue e Jared Leto contribui com o lastro necessário para que um filme como Morbius não desande por completo e torne-se uma autoparódia como Van Helsing (2004).
O diretor Daniel Espinosa organiza e encena Morbius de acordo com essas premissas: acomodando a autoimportância de Leto num molde de pastiche, navegando pelos códigos do cinema B sem alienar (demais) o público avesso à caricatura. Quando o filme não consegue respeitar essas premissas, a distorção é visível (as duas cenas pós-créditos feitas para colocar Morbius na caixa do universo expandido são na melhor das hipóteses anticlimáticas). No mais, tudo isso não é muito distinto do esforço que Espinosa fez no seu filme anterior, o subestimado Vida (2017), um horror espacial barato que também tentava reivindicar e emporcalhar um gênero tomado pelo bom gosto temático e estético depois de Gravidade (2013).
Espinosa é um especialista em claustrofobia e o melhor de Morbius do ponto de vista da encenação são as decisões de cenografia, câmera e luz para nos transportar para a Nova York do filme e combater a familiaridade com um senso de incômodo e deslocamento. Da mesma forma que os vampiros se afugentam com a claridade, Morbius trabalha humores com a luz de modo consistente, sempre usando a iluminação branca cegante dos espaços para deslocar o personagem e o espectador. Os efeitos de CGI baratos e a montagem frequentemente truncada não impedem Espinosa de confiar nas suas escolhas estéticas para contar a história.
A cena da perseguição até o topo do prédio é um bom exemplo. Ela pode ser questionada pelo final abrupto e mal explicado visualmente (Morbius se desestabiliza pelo vento que bate no arranha-céu ou é efeito de alguma ação do policial?) mas num blockbuster tecnocrata do MCU ela talvez se encerraria de forma mais anticlimática, sublinhando literalmente o que impede Morbius de fugir, quais são os limites e as regras dos seus poderes. Aqui, Espinosa confia que o filme terá autonomia audiovisual suficiente para ser primeiro uma experiência sensorial do que uma experiência textual. A celeridade com que a trama avança (inscrita em várias elipses e também nessa cena do terraço) é outro mérito de um filme que não perde tempo com o desnecessário e se encerra depois de justos 1h44, mais uma característica anacrônica da qual abrimos mão nos nossos filmes sem perceber.
Ano: 2022
País: EUA
Classificação: 14 anos
Duração: 108 min
Direção: Daniel Espinosa
Roteiro: Burk Sharpless, Matt Sazama
Elenco: Tyrese Gibson, Jared Leto, Matt Smith, Jared Hess, Adria Arjona