Vamos deixar bem claro desde a primeira linha dessa postagem: é impossível resumir a riqueza do cinema brasileiro na obra de apenas 15 cineastas. Seria impossível, também, se resolvêssemos expandir essa lista para 20, 50 ou 100 diretores e diretoras que produziram suas obras no Brasil. Com mais de um século de história, o cinema nacional sempre vai ter coisas novas para descobrir, vertentes inéditas para explorar, filmografias importantes nas quais mergulhar - nós somos desbravadores desse cânone, como qualquer um de vocês.
Fique claro, portanto, que os nomes que cortamos dessa lista são tão importantes quanto os que ficaram: Luiz Sérgio Person, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Júlio Bressane, Ana Carolina, Jorge Furtado, Arnaldo Jabor, Daniel Filho, Ivan Cardoso, Anna Muylaert, João Moreira Salles, Marcelo Gomes, Daniel Rezende, Sandra Kogut, Fábio Barreto e muitos outros estão nesse balaio. Os nomes que sequer cogitamos, ou esquecemos, com certeza também são fundamentais para entender a arte do nosso país.
Mas é no espírito do Dia do Cinema Brasileiro, que se aproxima na próxima quarta (19), que o Omelete resolveu listar 15 nomes cujas obras podem te ajudar a começar a explorar um dos melhores cinemas do planeta. E os nossos escolhidos você confere abaixo.
Nelson Pereira dos Santos
Dois filmes essenciais: Rio, 40 Graus (1955, no Globoplay e Telecine), Vidas Secas (1963, no Globoplay e Telecine).
Impossível começar uma historiografia do cinema brasileiro sem falar de Limite (disponível para assistir de graça aqui), clássico experimental de Mário Peixoto lançado em 1933, que foi pioneiro de técnicas de filmagem utilizadas até hoje e virou referência mundial em suspense. Mas Peixoto nunca mais dirigiu outro filme, de forma que o nosso primeiro grande autor provavelmente foi Nelson Pereira dos Santos.
Apesar de nascido e criado em São Paulo, Santos ganhou notoriedade com dois filmes (Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, de 1955 e 1957) que faziam retrato pungente dos conflitos sociais na capital fluminense nos anos 50. Fortemente influenciado pela literatura, adaptou Nelson Rodrigues (Boca de Ouro em 1962), Graciliano Ramos (Vidas Secas em 1963, Memórias do Cárcere em 1984), Jorge Amado (Tenda dos Milagres em 1977, Jubiabá em 1987) e Guimarães Rosa (A Terceira Margem do Rio em 1994). Também fez uma das primeiras aventuras do cinema nacional, Como Era Gostoso o Meu Francês (1971); e seguiu na ativa por mais de seis décadas, fechando a carreira com Brasília 18% (2006) e A Luz do Tom (2013). Morreu em 2018, aos 89 anos.
Glauber Rocha
Dois filmes essenciais: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, no Globoplay e Telecine), Terra em Transe (1967, no Globoplay, Telecine e MUBI).
O baiano Glauber Rocha é até hoje, provavelmente, a figura mítica proeminente do cinema nacional. Se posicionando na vanguarda estética e política da arte brasileira, misturando um retrato obstinado da cultura nordestina com alegorias sociais que resvalam (ou mergulham, a depender do filme) na fantasia, Rocha foi também um dos primeiros cineastas brasileiros a causar burburinho no circuito de festivais europeus. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968) foram exibidos em Cannes, onde os dois últimos ganharam prêmios. Já seu último filme, A Idade da Terra (1980) - um dos poucos feitos após o exílio imposto pela ditadura militar - fez barulho em Veneza. Morreu em 1981, aos 42 anos.
José Mojica Marins
Dois filmes essenciais: À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964, no Globoplay e Telecine), Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967, no Looke e NetMovies).
Zé do Caixão, o personagem-assinatura de José Mojica Marins, se tornou um ícone internacional do horror (fãs americanos o chamam de “Coffin Joe”), elevando o rotineiramente subestimado cinema de gênero brasileiro. Os longas dos anos 1960 - os dois citados acima, mais Meu Destino em Suas Mãos (1962), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968) e O Despertar da Besta (1969) - definem bem seu legado, mas Mojica continuou produzindo, inclusive em gêneros como a pornochanchada (ela própria, um capítulo a parte do cinema nacional) e faroeste. Em 2008, Encarnação do Demônio o trouxe de volta à crista da onda da cultura pop, cimentando de vez a importância do seu nome. Mojica morreu em 2020, aos 83 anos.
Cacá Diegues
Dois filmes essenciais: Xica da Silva (1976, para aluguel e compra no Apple TV+), Bye Bye Brasil (1980, no Globoplay, Telecine, Looke, NetMovies e Claro TV+).
Figura emblemática do que se convencionou chamar de Cinema Novo, movimento que deu fôlego à produção de filmes nacionais e os aproximou do público a partir dos anos 1960, o alagoano Cacá Diegues se tornou “diretor de grife” com o sucesso de Xica da Silva (1976), após uma série de outros títulos (Ganga Zumba, Joana Francesa) que já indicavam a construção de um ideal cultural brasileiro no cinema. Combativo à ditadura militar, realiza Bye Bye Brasil (1980) para marcar o processo de redemocratização do país, e mais tarde ajuda na Retomada do cinema popular com Tieta do Agreste (1996), Orfeu (1999) e Deus é Brasileiro (2003). Diegues segue na ativa - seu último filme foi O Grande Circo Místico, lançado em 2018.
Bruno Barreto
Dois filmes essenciais: Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976, no Looke, Telecine, MUBI e NetMovies), O Que é Isso, Companheiro? (1997, no Globoplay, Looke, MUBI, NetMovies e Claro TV+).
Bruno Barreto tinha 21 anos quando dirigiu Dona Flor e Seus Dois Maridos, em 1976, transformando a obra de Jorge Amado em um sucesso histórico para o cinema nacional - por décadas, o filme brasileiro mais visto nos cinemas. A partir daí, o filho dos produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto (que já eram nomes fortes da filmografia nacional) ajudou a construir clássicos como Gabriela Cravo e Canela (1982), O Beijo no Asfalto (1984) e O Que é Isso, Companheiro? (1997), que marcou uma rara indicação do Brasil ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Foi para Hollywood com Voando Alto (2003), estrelado por Gwyneth Paltow, e voltou ao país para assinar hits como O Casamento de Romeu e Julieta (2004) e Flores Raras (2013).
Hector Babenco
Dois filmes essenciais: Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980, no Globoplay, Netflix e Reserva Imovison), Carandiru (2003, no Globoplay, Telecine, Netflix e Reserva Imovison).
O argentino favorito de todo cinéfilo brasileiro, Hector Babenco nasceu em Mar del Plata, mas se naturalizou no Brasil antes mesmo de começar a dirigir filmes, em meados dos anos 1970. Com o thriller criminal Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977) e o antológico drama social Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), entrou no mapa dos grandes autores do cinema nacional, realizando mais tarde um dos filmes de maior sucesso e impacto cultural de sua era, Carandiru (2003). Foi bem recebido também em Hollywood, onde assinou O Beijo da Mulher Aranha (1985, que introduziu Sônia Braga aos gringos), Ironweed (1987) e Brincando nos Campos do Senhor (1990). Morreu em 2016, aos 76 anos.
Eduardo Coutinho
Dois filmes essenciais: Cabra Marcado Para Morrer (1984, somente mídia física), Edifício Master (2002, no Looke).
A arte do documentário no Brasil seria radicalmente diferente sem o mestre Eduardo Coutinho, que ensinou como registrar a vida “comum” de uma forma cinematográfica, e misturar encenação e verdade na tela de forma tão indistinguível quanto elas são no mundo real. Cabra Marcado Para Morrer (1984) é a obra-prima que retrata o assassinato de um camponês nos anos 1960, na Paraíba; mas O Fio da Memória (1991), Santo Forte (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004) e Jogo de Cena (2007) marcam a filmografia de um artista que seguiu sendo essencial até o fim. Morreu em 2014, aos 80 anos.
Suzana Amaral
Dois filmes essenciais: A Hora da Estrela (1985, nos cinemas), Hotel Atlântico (2009, somente mídia física).
O retorno recente de A Hora da Estrela aos cinemas, em versão remasterizada, chamou a atenção mais uma vez para a importância de Suzana Amaral na filmografia brasileira. Apesar de a paulistana ter levado Clarice Lispector para o cinema em sua versão mais plenamente realizada, e de quebra ainda eternizado imagens de São Paulo na tela grande, a sua condição de cineasta mulher no Brasil a impediu de realizar outros longas até 2001, quando saiu Uma Vida em Segredo, seguido então de Hotel Atlântico (2009). Um legado curto, mas brilhante e emblemático de todo um talento que poderia ter desabrochado com mais intensidade. Morreu em 2020, aos 88 anos.
Carla Camurati
Dois filmes essenciais: Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995, somente mídia física), Copacabana (2001, somente mídia física).
No mesmo pique, é sempre oportuno lembrar que a celebradíssima Retomada do cinema nacional, em meados dos anos 1990, foi operada largamente por diretoras mulheres. O sucesso absurdo de Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995) é icônico desse processo, e a direção de Carla Camurati (basicamente a nossa Sofia Coppola, já que era uma atriz frustrada que foi para a direção) é essencial para o filme funcionar. Seguiram-se outros bons filmes como La Serva Padrona (1998), Copacabana (2001) e Irma Vap - O Retorno (2006), além de um trabalho expressivo como produtora através da Copacabana Filmes.
Walter Salles
Dois filmes essenciais: Terra Estrangeira (1995, no Globoplay), Central do Brasil (1998, no Globoplay e Telecine).
Impossível falar da Retomada sem tocar em Central do Brasil, que reafirmou o Brasil como potência internacional chegando ao Oscar não só em Melhor Filme Estrangeiro como também em Melhor Atriz (para Fernanda Montenegro). O filme também foi o ápice da carreira do carioca Walter Salles, filho pródigo da família Moreira Salles (uma das proprietárias do Itaú Unibanco), que já havia impressionado ao codirigir Terra Estrangeira (1995) com Daniela Thomas, e seguiu o sucesso de Central com títulos como Abril Despedaçado (2001) e Linha de Passe (2007). Em Hollywood, fez Diários de Motocicleta (2004), Água Negra (2005) e Na Estrada (2012).
Guel Arraes
Dois filmes essenciais: O Auto da Compadecida (2000, no Globoplay e Telecine), Lisbela e o Prisioneiro (2003, somente mídia física).
Nos cinemas neste momento com o seu Grande Sertão, o pernambucano Guel Arraes fez transição celebrada de uma longa carreira na televisão durante os anos 1980 e 1990 para o cinema, onde os seus O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) se tornaram sucessos históricos. No pique da construção de um cinema popular brasileiro apoiado nas nossas narrativas tradicionais, Arraes também fez Caramuru - A Invenção do Brasil (2001), Romance (2008) e O Bem-Amado (2010). Ainda este ano, chega aos cinemas a aguardadíssima continuação O Auto da Compadecida 2.
Laís Bodanzky
Dois filmes essenciais: Bicho de Sete Cabeças (2000, na Netflix), As Melhores Coisas do Mundo (2010, para aluguel e compra no Prime Video).
Se Laís Bodanzky hoje está em posições de liderança no Spcine e na Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, não é por acaso. Durante os anos da Retomada, ela se destacou com o sensível Bicho de Sete Cabeças (2000), que provou que o galãzinho Rodrigo Santoro era um ator para se levar a sério, retornando à direção com Chega de Saudade (2007), As Melhores Coisas do Mundo (2010, um dos melhores e mais maduros filmes teen nacionais), Como Nossos Pais (2017) e A Viagem de Pedro (2021), além de ter produzido vários outros longas, incluindo as animações Uma História de Amor e Fúria (2013) e Perlimps (2022).
Fernando Meirelles
Dois filmes essenciais: Domésticas: O Filme (2001, no Belas à La Carte), Cidade de Deus (2002, no Globoplay, Netflix e Telecine).
O colosso que foi Cidade de Deus (2002) não pode ser ignorado em qualquer discussão sobre cinema brasileiro. Fernando Meirelles e Kátia Lund criaram aquele que é talvez o clássico definitivo da filmografia nacional, para o bem ou para o mal, e basicamente criaram uma linguagem comercial que repercute nos filmes brasileiros até hoje. Os seus trabalhos pregressos em Menino Maluquinho 2 - A Aventura (1995) e Domésticas: O Filme (2001) já prenunciavam essa explosão, enquanto as suas obras hollywoodianas que vieram depois, como O Jardineiro Fiel (2005) e Dois Papas (2019), construíram um legado de respeito para o cineasta ao redor do mundo.
Karim Aïnouz
Dois filmes essenciais: Madame Satã (2002, no Canal Brasil), A Vida Invisível (2019, no Globoplay e Paramount+).
Nome forte do Brasil nos festivais internacionais de cinema da atualidade, o cearense Karim Aïnouz fez uma estreia de peso como diretor com Madame Satã (2002), um clássico de representatividade LGBTQIA+ no cinema nacional. Ainda mais elogiados foram O Céu de Suely (2006), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, codirigido com o parceiro frequente Marcelo Gomes), O Abismo Prateado (2011), Praia do Futuro (2014), A Vida Invisível (2019) e Motel Destino (2024), que chega aos cinemas brasileiros em 22 de agosto após passagem celebrada pelo Festival de Cannes 2024 - confira o que o Omelete achou do filme aqui.
Kleber Mendonça Filho
Dois filmes essenciais: Aquarius (2016, na Netflix e Canal Brasil), Bacurau (2019, no Globoplay e Telecine).
E, por fim (mas não menos importante), Kleber Mendonça Filho é outro dos nomes que se tornaram inescapáveis no cinema brasileiro contemporâneo. Após uma série de curtas celebrados gravados em Recife, sua cidade natal, ele se manteve firme com o retrato da vida urbana da capital pernambucana em O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), que se tornaram grandes sucessos. Bacurau (2019) veio a seguir com um alarde maior ainda, brincando com gêneros como a ação e a ficção científica, ainda menos explorados na filmografia nacional; e o documentário Retratos Fantasmas (2023) chegou para arrematar a obra notável do cineasta até aqui.