Batizada em referência a uma canção de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, a peça teatral Rasga Coração, que traduziu as desilusões políticas do Brasil dos anos 1970, vai ganhar as telas em uma adaptação marcada pela poética do diretor gaúcho Jorge Furtado (O Homem Que Copiava). Filmado no fim de 2017, a transposição para o cinema do derradeiro texto de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1979) traz Marco Ricca no papel de Manguari Pistolão, um ex-militante que se vê defasado em suas crenças éticas ao questionar as escolhas de seu filho (Chay Suede). Drica Moraes, Luisa Arraes e George Sauma integram o elenco do longa-metragem, que está em finalização, sem data de estreia marcada.
Vianinha escreveu Rasga Coração em meio à luta contra um câncer. Chegou a ditar o segundo ato da peça para um gravador, quando já estava desenganado. Mas quando o texto foi aos palcos pela primeira vez, em 1979, sua montagem foi ovacionada. Seu universo de personagens arrebatou elogios até do dramaturgo Nelson Rodrigues: “Rasga Coração é uma das mais belas e fascinantes obras-primas do teatro brasileiro. Não posso ser mais conclusivo e definitivo”
Diretor do cult Ilha das Flores, premiado no Festival de Berlim de 1990, Furtado fala ao Omelete sobre como preservar o espírito crítico de Vianinha ao revisitar a peça.
Omelete: Qual é o simbolismo político de Rasga Coração para a sua geração e o que essa história pode representar para os jovens de hoje?
Jorge Furtado: Eu não consigo... na verdade, nem tento... pensar em termos de geração. Tem muita gente da minha geração muito diferente de mim. Lembro do que a peça representou para mim, quando a vi em São Paulo, com Raul Cortez fazendo Manguari Pistolão, à frente de um elenco extraordinário. Saí tonto do teatro, depois de submetido a uma vertigem de humanismo, poesia e política. A peça, uma das melhores que vi na vida, mudou minha visão do país. Eu tinha 20 anos.
Omelete: O que a poética na dramaturgia de Vianinha ainda representa para o mundo de hoje? Como essa poética dele foi trabalhada no filme?
Jorge Furtado: Vianinha era um gênio, que deixou uma obra extraordinária, apesar de ter morrido com 38 anos. É espantosa a sua capacidade de criar personagens de grande humanidade. Na peça, ele nos apresenta mais de uma dúzia de personagens, e todos têm razão, têm sentido, têm algo a dizer. Esta capacidade de ouvir o diferente, de fazer política respeitando diferenças, este genuíno amor pelo ser humano, é fundamental em qualquer época e lugar, e urgente no Brasil de hoje. O roteiro é uma adaptação do texto dele, com muita liberdade - como exige o cinema quando busca sua fonte no teatro - mas bastante fiel à peça, que foi escrita e se passa nos anos 1970. Mudei o mínimo possível, adaptando a história para os dias de hoje. Quarenta anos depois, a peça parece ter sido escrita ontem.
Omelete: De alguma forma, um dos teus trabalhos mais cultuados, o episódio Anchietanos (1997), do programa da TV Globo Comédias da Vida Provada, tem uma estrutura narrativa que flerta com Vianinha. Foi uma influência direta. O quanto Oduvaldo Vianna Filho foi uma referência para a sua formação como autor?
Jorge Furtado: Além da peça Rasga Coração, eu era um grande fã de A Grande Família, seriado que o Vianinha criou e escreveu, na TV Globo, até sua morte. Acho que ele influenciou diretamente muitos roteiristas de televisão.
Omelete: Quem é o seu Manguari Pistolão e o que ele representa sobre o Brasil atual?
Jorge Furtado: O meu Manguari Pistolão - a quem Marco Ricca deu existência - é um brasileiro comum, um trabalhador, um lutador, um pai preocupado com o futuro do filho, um marido solidário, um homem que não desiste de lutar, que sofre com saudade dos amigos perdidos, e um cidadão profundamente triste com o momento político do Brasil. É o mesmo Manguari Pistolão do Vianinha.
Omelete: Como foi o processo de construir linguagem cinematográfica a partir do texto de Vianinha?
Jorge Furtado: Já fiz muitas adaptações para a televisão, aprendi que o respeito ao original passa por descartar e transformar cenas, falas, cenários, fazendo escolhas que preservem o sentido original e descartem tudo que atrapalha a viagem que o texto necessariamente precisa fazer entre a forma teatral (ou literária) e a forma audiovisual. A peça se passa em três épocas diferentes, o filme só em duas. Além dos personagens e suas histórias, um dos brilhos da peça é o entrelaçamento das diferentes épocas, a dramatização do choque de gerações e da ideia de que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Esse processo, de embaralhar diferentes épocas, é possível no teatro e no cinema, mas com diferentes ritmos e artifícios narrativos.