“Running Wild”, canção que abre o Happy, disco de estreia solo do cantor Jin, do BTS, tem pouquíssimo a ver com o álbum que a sucede. Uma ode à juventude tardia e ao reacender de um amor acomodado, o single composto em inglês por Gary Barlow (integrante da boyband Take That) tem todas as marcas do pop britânico empoeirado de meia idade - sintetizadores estourados substituindo a percussão, refrão de melodia chapada e repetitiva, filtros de voz calibrados para esconder os vocais tradicionalmente pouco elásticos dos popstars ingleses, e por aí vai. Tudo bem que Jin é o integrante mais velho do BTS, mas nem do alto dos seus 31 anos o rapaz parece merecer o mesmo tratamento musical de um ex-A list europeu tentando se comunicar com uma fanbase que fantasia sobre fugir do marasmo suburbano com um musicista bonitão.
Não, o Happy não começa de verdade em “Running Wild”. É no estalar de baquetas que abre a faixa seguinte, “I'll Be There”, que ele se revela - uma correção de curso ou uma explicitação de rumo, como quiser chamar, mas o fato é que o disco muda de linguagem totalmente a partir dela. De uma forma muito literal, é claro, o Happy passa aqui a oscilar confortavelmente entre o coreano e o inglês nas suas letras, mas também na produção a lógica muda, abandonando um pouco a ideia de controlar e construir narrativas que domina o pop ocidental para se entregar - ainda que com a cautela de um lançamento tão proeminente em termos comerciais - ao prazer marcadamente coreano por encontrar o que funciona na música. Pouco interessa a ortodoxia: se te faz sentir algo, deve estar certo.
Nas cinco canções seguintes, assim, o Happy costura com autossatisfação óbvia o analógico e o digital para demarcar um território de pop rock com barreiras flexíveis, no qual Jin consegue transitar muito bem como artista. Se a própria “I'll Be There” aposta em um tom mais leve de guitarra e bateria - aqui, enfim, a sugestão de jovialidade funciona, até por se apoiar numa narrativa de futuro, ao invés de passado -, “Another Level” aparece em seguida com sua melodia ascendente e seu gancho melódico synthrock (pense Imagine Dragons, quando eles funcionam) para provar que Jin consegue não só esticar seu timbre para notas mais altas, como também serpenteá-lo ao redor de uma produção de tons mais “sóbrios”.
“Falling”, coescrita e produzida com integrantes da banda japonesa One Ok Rock, empurra Jin ainda mais longe para o território guitarras ardidas e agudos esticados; enquanto o excelente synthpop de “Heart on the Window”, parceria com Wendy, está aqui para nos lembrar que ele ainda pertence ao dance sofisticado que abriga a fatia mais classuda dos veteranos do k-pop. É uma sequência que serve principalmente para revelar Jin como um frontman igualmente capaz de dividir espaço sonoro com a guitarra de Toru Yamashita e com os agudos de golfinho da colega do Red Velvet. Um anfitrião gracioso de talentos, que se entrelaça às contribuições de seus parceiros criativos sem muita vaidade.
E essa é uma receita tão boa para o estrelato pop quanto qualquer outra. Num cenário onde tanto se celebra (ou costumava-se celebrar, ao menos) os camaleões, saber ouvir é talvez tão importante quanto saber cantar. Happy indica que, por sorte, Jin consegue fazer as duas coisas
Ano: 2024
Produção: Pdogg, GHSTLOOP, Arcades, Ryan Carline, Jacob Attwooll, Josh Record, Matt Attard, Taka, Joshua Thompson