Ricardo Augusto, 31 anos, está em quarentena desde 14 de março. Conta nos dedos quantas vezes saiu de casa: duas para ir ao médico, três para a operação do tumor de sua cadela no veterinário, uma ao Consulado de Portugal. Toma imunossupressores, que deixam sua imunidade baixa e o encaixam no grupo de risco caso contraia Covid-19.
Antes, ele tinha o ritual semanal de sair do trabalho e passar na banca próxima ao Plaza Shopping, em Niterói, para comprar gibis mensais e encadernados. Quase tudo da Marvel: Homem-Aranha, Hulk Imortal, Campeões, Gwen-Aranha, Demolidor. Também Batman (enquanto tiver Tom King) e Shazam.
"Compro na mesma banca já faz uns três anos, mais ou menos, e o jornaleiro já era da família", ele me disse via Facebook. "Ia mais pela experiência de ver os gibis que estavam saindo, comprava alguns, e para bater papo com o jornaleiro."
Sem contato com a banca preferida, Ricardo compra de comic shops que atendem online e de lojas maiores na internet. Diz que a Comic Boom!, de São Paulo, tem um cuidado extra para embalar os gibis que ele não vê nas lojas grandes. Fora que eles mandam brindes.
Christian Ordoque, 48 anos, de Porto Alegre, está em quarentena há tanto tempo quanto Ricardo. É diabético e teve câncer duas vezes. Ou seja, também é grupo de risco. Diz que saiu apenas para o essencial desde meados de março, nenhuma delas para comprar gibi. No mundo de antes, ia em comic shop e livraria três vezes por semana.
"Com a pandemia, não vou mais. Tenho comprado na Amazon, Estante Virtual e lojas de editoras, como a Mythos", Christian me contou também via Facebook.
"O que mudou é quando chegam os pacotes aqui em casa. Pego na portaria e já desço com o estilete para abrir e deixar a caixa no lixo. Subo com as HQs ensacadas, passo um álcool borrifado no plástico, passo pano. Com a HQ aberta, passo pano úmido com solução de álcool nas 4 capas da revista. Peco por exagero e não por omissão."
Raquel Gadelha, 33, é compradora devota de Batman, X-Men, Conan, J. Kendall, Lobo Solitário e Monster. Também vai nos encadernados de Walking Dead, Paper Girls, Black Hammer e Fábulas. Em conversa por WhatsApp, conta que, embora ninguém na sua casa seja grupo de risco, todos seguem as determinações de isolamento "ao pé da letra". Ela continua comprando todos seus gibis com o serviço de entrega de uma comic shop de Fortaleza, a Reboot Comic Store.
E não só para ela. Procurando presente para um amigo que também curte HQ, mas sem poder olhar capas, folhear e escolher o presente, recorreu à loja. "Não só me ofereceram uma verdadeira curadoria das obras disponíveis a fim de me ajudar em minha escolha, como também prepararam o presente de uma forma linda, com direito a cartão de presente e dedicatória", ela conta.
"São essas delicadezas e cuidado que tornam as comic shops ambientes tão cativantes e insubstituíveis."
As comic shops tiveram que mudar o esquema. Inclusive por obrigação. A Reboot, de Fortaleza, já tinha atendimento pela internet e sistema de delivery. Com a operação física reduzida, a loja incentivou os clientes a usarem os serviços – que muitos nem conheciam.
"Criamos campanhas para auxiliar o cliente local a conseguir manter a coleção em dia, em tempos de pouca mobilidade", diz Érika Sales, da Reboot, em conversa por e-mail. "Outro serviço que criamos foi uma espécie de 'caixinha'. O cliente que preferisse poderia ir guardando suas edições para pegar posteriormente, quando houvesse a reabertura do comércio."
Eles também fizeram lives via Instagram e intensificaram a participação nas redes, buscando manter o contato com os clientes. "Alguns nos disseram que estávamos salvando a quarentena", Érika comentou.
A Itiban Comic Shop, de Curitiba, passou dois meses fechada, voltou, teve que fechar mais duas semanas e enfim voltar com horário reduzido. As regras para o comércio mudam conforme a curva de contaminados e ocupação dos hospitais em cada cidade.
"Tivemos que correr pra ativar a Itiban online, mudamos de plataforma, passamos a incentivar a compra online e o trabalho com as redes sociais ficou mais intenso", diz Mitie Taketani, proprietária da loja.
Em São Paulo, Guilherme Lorandi, da Loja Monstra, diz que atendeu cliente até as 23h30 – para evitar movimento nas ruas. "Foi na segunda semana de quarentena. Ele pediu pra vir por volta desse horário porque conseguiu convencer a esposa que era suave de parar o carro aqui na frente e não ia ter ninguém", diz Guilherme.
"Veio e gastou uma boa nota. Valeu o esforço!"
Guilherme, aliás, chegou a dormir na loja durante um período da pandemia. "Minha família inteira é grupo de risco, aí fiquei com muito medo de ir pra casa (detalhes à parte, consegui um chuveiro aqui no prédio, foi de boa)." Foi o tempo para preparar a estratégia da Monstra durante a quarentena: mais ativa nas redes, principalmente Instagram.
"A galera tem sido muito positiva com essa nova abordagem online. Eu sempre amei vender histórias certas para cliente certos, sempre me baseando no gosto de cada um. Agora, trabalhando online, o método é outro, a venda é outra. Tudo é bem diferente, mas divertido!"
Nas conversas com clientes e lojistas, a conclusão de todos é a mesma: a comic shop ou a banca não são só lugares para pegar seus gibis, pagar e ir embora. É lá também que você conhece novidades, namora aquele importado caro, pega recomendações dos vendedores, reclama dos filmes da DC, convence neófitos a ler os argentinos e ouve palestrinha sobre os tempos do formatinho. São pontos de encontro, paradas para bate-papo com seus iguais no vício.
Da parte dos lojistas – que, mesmo com lojas físicas abertas, estão com movimento esmagadoramente menor –, reproduzir essa experiência acontece nas redes sociais. Lives, contatos por mensagem privada e outras iniciativas tentam dar conta da redução da presença física.
Da parte dos clientes, começa a surgir a conscientização de que, se abandonarem seus pontos de venda preferidos agora, eles não estarão lá quando a pandemia acabar. A tentação com o preço mais baixo de lojas grandes, como Amazon, é grande e nem sempre se resiste. "A pandemia gerou incertezas econômicas para a maioria das pessoas", lembra Ricardo Augusto, de Niterói. Mas "preferi ajudar as comic shops", ele completa.
Não é nada fácil, porém. "Acho que para nós e para os clientes está sendo difícil esta mudança de hábito", diz Mitie, da Itiban de Curitiba. "Manter a coleção de quadrinhos em dia até que é possível. Levar a experiência do encontro físico, das conversas, risadas, aplausos e trinta anos de loja para uma telinha é impossível."
"A sensação é de que trabalhamos muito mais e vendemos muito menos", ela complementa.
Por outro lado, Rildon Oliver, cliente da Reboot em Fortaleza, diz que teve uma experiência que lembrou os tempos pré-pandemia.
"No dia do meu aniversário, via delivery, a Reboot me manteve lendo X-Men, Conan e Homem-Aranha: História de Vida", Rildon conta por e-mail. "Não são só quadrinhos. Tem muito mais em torno, e poder rapidamente revisitar esse lugar, onde fiz tantas amizades, mesmo que rapidamente, de máscara e banhado em álcool-gel, foi um frescor e a certeza de que vamos ficar bem."
UM GRÁFICO
Produzido pela Hollywood Reporter, com base em dados dos sites ICv2 e Comichron. Trata da grana que circula no mercado norte-americano de quadrinhos e de uma virada bem recente nas contas.
Do total estimado de 1,2 bilhão de dólares em 2019, gastou-se 765 milhões (63%) em graphic novels – incluindo aí tudo que tem lombada quadrada – e 355 milhões (29%) em revistas. Por ponto de venda, os norte-americanos gastaram 525 milhões em comic shops e 570 milhões em livrarias. Foi a primeira vez que as vendas em livrarias superaram as de comic shops.
O resto é digital (90 milhões, ainda bem pouco) e outros pontos de venda.
O motivo da subida e da virada no mercado? Segundo a matéria, a maior diversidade de títulos, de temas e de autores. Ou seja: a fuga dos super-heróis, ou pelo menos do super-herói tradicional. E quem procura esses títulos mais “diversos” compra em livraria, não comic shop.
UMA CAPA
De Are You Listening?, de Tillie Walden. Só porque eu li esta semana. E também porque ganhou a categoria de Melhor Graphic Novel do Eisner 2020
Walden teve uma graphic novel publicada no Brasil no ano passado: Spinning (ed. Veneta, trad. Gabriela Franco). Tomara que venham mais, como Listening: em que ela se mostra a sucessora do Hayao Miyazaki. Tem preview aqui.
Não, não vou seguir a cartilha de todas as matérias sobre a Tillie Walden e dizer que ela tem só 24 anos. Ops.
UMA PÁGINA
Richard McGuire's "Here", but faster pic.twitter.com/gmjDTv2eEn
— kelli anderson, in solidarity (@kellianderson) May 30, 2020
Na verdade, várias. Mas que dá para chamar de uma. Aqui, de Richard McGuire, na versão em inglês, em fast forward. Aqui saiu aqui pela Quadrinhos na Cia. (com tradução minha). O gif é da designer Kelli Anderson.
(o)
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.